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sexta-feira, 23 de abril de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 4

as crónicas da Eventos...


Carta ao pai da tal*

António Cagica Rapaz

Espero que esta o vá encontrar de boa saúde que eu cá vou indo menos mal grassas adeus. Primeiro pesso imença desculpa ao senhor Fernando pela minha ozadia e pelas calinadas porque não concigo escrever direito por linhas porcas ou lá como se costuma dizer. Mas como o outro que diz quem não risca não petisca cá vai e seja o que Deus quizer.

Os meus amigos dizem que eu sou assim a modos que prafrentex mas olhe o senhor Fernando que me vi à rasca pra me resolver a escrever. O senhor Fernando deve saber quem eu sou, pode é não ligar o nome à peçoa ou se calhar é pouco previsto como o meu pai que andou da escola com o senhor Fernando. Ele chama-se Jaquim e tinha a alcunha do Gasosa por causa do gargolide que fazia dentro dágua quando andava ao banho. Tá a ver, não tá, senhor Fernando, fazia bolinhas, não lhe dava com as mãos. E ficou o Gasosa.

Não leve a mal eu lembrar as partes do meu pai que é como quem diz quem sai aos seus não regenera ou lá como se diz que eu nunca fui grande coisa em ditados dava muitos erros. Mas vamos ó que intressa.

Talvez o senhor Fernando já tenha reparado em mim eu costumo estar na esplanada onde você costuma ir e fico as mais das vezes centado na mesa ó pé da parede da junta. Ao domingo trago sempre não falha um fato de treino incarnado com riscas azuis à Benfica que eu sei que o senhor Fernando é do Benfica também.

Não é pra me gabar mas o fato de treino fica-me bem tem cá uma pinta mas como ia a dizer senhor Fernando eu costumo ficar ali por causa da sua filha mais nova a Tânia Vaneça que eu estou apaixonado por ela.

Prontos é assim não vale a pena estar com mais conversa eu sou franco senhor Fernando estou apaixonado pela Tânia Vaneça, prontos. O pior é que não concigo falar com ela, sou acanhado nestas coisas. Os meus amigos já toparam tudo e andam sempre a mangar comigo atão já falastes ca tal, ainda andas atrás da tal, já engatastes a tal, tá a preceber senhor Fernando.

Por acaso deste dia, olhe foi no dia do Benfica – Passos de Ferreira que deu na telvisão, estive quase vai não vai para lhe oferecer uma aveleda. Quando o Zóvique marcou o golo estive mesmo quase porque eu já reparei que o senhor Fernando é como eu gosta de uma aveleda para arrebater. Às vezes também amando abaixo um isquezinho um xivas é dos bons e dos mais caros.

Sim porque eu senhor Fernando não é para me gabar mas tenho-me safo bem já ganhei umas croas boas e acho que é altura de construir famila afundar um lar como se costuma dizer não é. Há por aí muita rapariga geitosa mas eu engrassei com a Tânia Vaneça prontos e dali não tiro o sentido. Às vezes vou às descotecas e até tenho uma garrafa de xivas em todas à minha orde e olho pra ela a dançar com os outros que eu não me afoito a pedir-lhe. Custa-me um bucado quando toca os slôs aquelas músicas mais paradas. A gente sabe como é esta malta os de fora atão são uns abuzadores mas ela não dá preferença a nenhum dança com todos. Eu estranhava que ela dançaçe assim um bucado encustada mas disse-me o disco joca que é mesmo assim é da música tem de ser encustado senão não dá sai do ritmo, o disco joca sabe destas coisas.

E depois assim como assim digo cá pra mim que se ela tiver já batida sabe mais e pode esculher melhor, digo eu não sei. Salvo seja até já ouvi dizer que certas mulheres da vida quando casam até são as melhores, salvo seja, não é senhor Fernando.

Pois como ia dizendo senhor Fernando a vida tem-me corrido bem.

Com o que ganhei na barca comprei uma butique de artezanate e recordassões e tou na maior.
Vou muitas vezes lá fora comprar coisas e há tempos arranjei um bescate que tem dado massa como milho e não custa nada. Isto fica só entre a gente que o rapaz pediu-me segrede. Mas como se calhar qualquer dia já somos famila vou-le contar.

O Libório, aquele da padeiria, aqui á tempos pediu-me se eu não me importava de lhe trazer uma incomenda de Badajoz, coisa pouca, um quilo se tanto. Disse-me que era uma farinha especial que dá bom gosto ao pão e cá não há. Como ele pagou bem o geito fui lá mais vezes e deste dia desconfiei da fartura e abri o pacote. Era mesmo farinha por sinal bem branquinha mas palpita-me que aquilo não é só para o pão. Vai daí afoitei-me e pedi mais dinheiro. O gajo ficou à rasca disse logo é pá fala baixo, toma lá se precisares mais avisa. Olhe senhor Fernando aquilo é uma mina já comprei um jipe e aparelhages esterofónicas tenho três. Cá pra mim que não sou parvo aquela farinha é algum produto milagrozo que o gajo vende bem vendido a gajos de certa idade que já não têm… precebe senhor Fernando… que já não chegam lá. Já tenho ouvido falar em coisas assim e há por aí malta entradota cheia de massa que quer gozar a vida e já não consegue. Cá pra mim é isso e o negócio tá a dar. O Libório tá cheio dele e não é a vender carcassas e bolinhos que se ganha tanto cacau. Mas eu como não sou parvo não quero complicassões só trago a farinha e vou sacando o meu. Como vê senhor Fernando sou um home trabalhador, desenrascado e tenho com que me governar. Por isso pesso-lhe o favor de apalpar o terreno se achar que dou um bom genro. No domingo não falha tou lá caído outra vez com o meu fatinho de treino que é um mimo. Vou encomendar logo uma aveleda para o senhor Fernando que pago eu. Se o senhor Fernando achar que tenho uma chansse é só fazer sinal e eu vou pra sua mesa.

Obrigado senhor Fernando e olhe que não se há-de arrepender conte comigo e se precisar arranjo-lhe um bocadinho de farinha da boa, da tal. Os amigos são prás ocaziões, não é, senhor Fernando.

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*Publicado no n.º 23 de Sesimbra Eventos, de Fevereiro/Março de 2003.

3 comentários:

  1. Não se me dava nada apostar que já me cruzei com o filho do Ti Jaquim Gargolide, lá na esplanada.
    Se bem que fatos de treino como aquele, aparecem lá vários.
    Má sorte a minha nunca ter encontrado ninguém que me pedisse agora para trazer farinha de Badajoz.
    Com a crise que aí vai, dava-me um "geitão" (ai Cagica, esta palavra há-de ficar eternamente entre nós...).
    A mim, nos tempos da outra senhora, só me encomendavam caramelos da Viuda de Solano (daqueles parecidos com o da fotografia) e depois levavam meses antes que mos pagassem.
    Já eles, por sinal, "pagavam-se" um bocadito aos dentes.
    E era um inferno com os guardas da fronteira sempre a exigirem ficar com vários pacotes para deixarem seguir dois ou três.
    Tempos difíceis...

    Desculpe-me o Escriba este arrazoado, mas senti-me quase a responder ao autor de texto tão saboroso.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Ora essa, Senhora Dona Ana! Não há nada para desculpar!

    Boa noite, Ó Mestre!

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  3. Por momentos, ao ler o título, pensei que tivesse sido alguém constipado, fanhoso, com a voz nasalada, a pedir presentes em Dezembro a quem os costuma trazer durante a infância.

    Depois verifiquei que não, que era mais uma fabulosa história Cagiquiana.

    Daquelas em que só pelo cheiro sabemos que a qualidade do produto é insuspeita...

    Boa noite, ó Mestre!!!

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