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sexta-feira, 16 de abril de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 3

as crónicas da Eventos...



Arrábida, aldeia de irmãos*

António Cagica Rapaz

Encolhida entre as penedias abruptas do Caneiro e a luz protectora mas confinante do farol, Sesimbra sufocava de ansiedade e sonhava com a aventura a que o mar convidava.

No horizonte recortava-se a costa alentejana, América inacessível, Índias impensáveis para os nossos antepassados que contemplavam o oceano infinito entre dois balanços das suas frágeis embarcações.

Por terra, a Alfarrobeira era o limite do real conhecido e dominado. Para além da curva, era o risco de uma aventura que passava pelo Castelo, território de gente com outro falar, mais arrastado, homens vergados sobre a terra, vivendo com animais à beira, hordas que desciam à borda d’água, no pino do Verão, de alcofa na mão, demandando a armação...

Mas a negridão do Inverno também chegava a obrigar homens, mulheres e crianças do nosso burgo a subir a serra, a bater à porta dessa gente de falar estranho, pedindo uma côdea de pão, alguma fruta, naco de toucinho ou um fio de azeite. Era a fome, a miséria de dias sem fim em que o mar negava o sustento, em que a vida ficava presa a uma enfiada de carapaus secos e o estômago era enganado com magras sopas de café.

O homem sofria, rezava e sonhava. E acabou por se fazer ao mar. Cautelosamente, junto à costa, palmo a palmo, a curtas braças, Calhau a Calhau, dobrou o Cabo, enfrentou tormentas, até chegar à Arrábida, ao paraíso, como Ulisses chegou a Ítaca.

E desde então compreendeu que não está isolado e que ali fica outra terra prometida, na imensidão da serra, no deslumbramento da vegetação, na embriaguez dos odores, no êxtase do silêncio, presépio que os deuses quiseram desenhar, moldar, construir, aqui tão perto.

Com o tempo, e embora Sesimbra fosse a nossa bela terra, a verdade é que o apelo se revelou, para sucessivas gerações, irresistível. A magia, o fascínio da Arrábida era como um cântico de sereias, melodia de fim de Verão, sortilégio de Setembro quando certas famílias encetavam a sua peregrinação, lenta e preguiçosa, gozando o deleite do prenúncio do Outono, na paz e no encantamento do Portinho. Entre tufos de alfazema, alecrim e tomilho, era um tempo de recolhimento místico só quebrado pela festança profana de caldeiradas memoráveis. Sentimentos, odores e sabores de fraternidade, na quietude de um cenário idílico, tradição saudosa de caminhantes devotos ante a senhora del Carmen. Arrábida de poetas, comunhão perfeita com uma natureza que nos deslumbra e comove, que nos une na contemplação da beleza suprema. Arrábida, verdadeira aldeia de irmãos, onde sempre voltamos, nessa busca incessante do tal paraíso perdido. Como alguns seguem a estrela do pastor, como outros vão a Meca...

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*Publicado no n.º 29 de Sesimbra Eventos, de Fevereiro/Março de 2004.

2 comentários:

  1. Uma declaração de amor à Natureza.
    Ou de como uma belíssima reserva natural merecia ser admirada e respeitada.

    Infelizmente, esta Arrábida aqui reverenciada arrisca-se, num futuro não muito longìnquo, a existir apenas nos livros, nas fotografias, nas memórias, em suma.
    Uma pena.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Fantástica prosa, totalmente arrebatadora e com um final "à Cagica"!

    Boa noite, Ó Mestre!

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