__________________________________________________________________

sexta-feira, 9 de abril de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 2

as crónicas da Eventos...




A paixão de Cristo

António Cagica Rapaz

Há cerca de cinquenta anos, havia um Jesus e um Cristo na linha avançada do Desportivo de Sesimbra, terra muito votada ao culto do Senhor das Chagas.

Era um tempo bendito de inocência e sonho, vivido num universo de forte religiosidade, na companhia do nosso amigo e companheiro, o padre João, que tanto nos reunia no adro da igreja como no campo do Desportivo. Não sei se, na nossa infância tão povoada de ideais e de sonhos, o futebol terá chegado a aproximar-se da grande área da religião, mas foi certamente uma grande paixão.

E eu, como os outros, era um menino posto em adoração perante uma bola de futebol e em admiração diante dos jogadores do nosso Desportivo que passavam à minha porta a caminho dos treinos a que eu assistia sempre que a escola permitia.

Paralelamente, havia os ídolos distantes, quase irreais, de um Belenenses que o meu pai, sem esforço nem mentalização particular, me ajudara a preferir.

O Matateu morava connosco, ocupando uma moldura que pendurei na parede de onde ele me sorria com os dentes tão brancos como os cordões que sobressaíam no azul do céu da camisola com a Cruz de Cristo, tinha de ser…

Os anos passaram e quiseram os fados que me fossem proporcionadas a alegria de jogar futebol a sério e a honra de defrontar muitos dos ídolos da minha meninice. Porém, nem nos mais arrojados devaneios oníricos eu me atrevi a imaginar que, um dia, viria a jogar com o Lucas Sebastião. Afinal aconteceu, embora não fosse bem o Lucas da minha moldura, mas outro muito parecido que envergava as cores do Atlético. Felizmente, para meu grande contentamento e recatado orgulho, era o mesmo Matateu…

Ao longo da nossa vida, no futebol e no resto, vamos perdendo ilusões, com o desfazer de mitos e a degradação de valores. E a desilusão é tanto maior quanto mais perto estamos da realidade. Quem vive o futebol de longe, não sabe ou finge ignorar quanta mentira o envolve.

Há muitos anos que ficou para trás a idade da inocência e que me tornei convictamente céptico quanto à existência de verdade e transparência no mundo da bola. Não é, mas até podia ser uma questão de fé, pois também milhões de pessoas acreditam na existência de Deus sem dela possuírem qualquer prova irrefutável.

Ora, e aqui reside o fascinante mistério, apesar do muito que está por apurar sobre arbitragem, suspeitos aditivos vitamínicos, negócios duvidosos, promiscuidades e cumplicidades, o certo é que não deixamos de vibrar com a magia dos artistas, o entusiasmo da multidão ingénua, a euforia do golo e a alegria genuína da vitória.

E, apesar das sombras que pairam sobre os estádios, continuamos a gostar de futebol, presos ao sortilégio da bola, embora não seja como nos tempos do romântico quarto de hora à Belenenses ou das gestas heróicas de Jesus, de Cristo e tantos outros fiéis de lenço atado à volta das cabeças que metiam a rudes bolas com atilhos e que sofriam autênticas flagelações em campos pedregosos que percorriam calçados com botas de traves impiedosas.

Em verdade vos digo que os templos estão infestados de vendilhões mas, na sua essência, o jogo é o mesmo, a paixão não morreu, e esse é o admirável milagre do futebol…

____________
*Publicado no n.º 33 de Sesimbra Eventos, de Outubro/Novembro de 2004.

2 comentários:

  1. E o admirável milagre das crónicas de Cagica Rapaz é que, mesmo versando um tema que a algumas pessoas nada diz (refiro-me, no meu caso, ao futebol...) ainda assim consegue prender o leitor, irresistìvelmente, do princípio ao fim do texto.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

    ResponderEliminar
  2. Imagine-se então para quem gosta do tema, como é o meu caso, qual o grau de satisfação sentido ao ler estas crónicas!!!

    Que jogada magistral se pode fazer com as palavras!

    Boa noite, Ó Mestre!

    ResponderEliminar