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quarta-feira, 28 de abril de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 8




Planeta Reboque*

António Cagica Rapaz

Quem costuma deitar um olho, mesmo distraído, à televisão já viu com certeza o anúncio do Planeta Reebok, com aqueles atletas medonhos, gigantescos, invencíveis, que pisam, esmagam, saltam, destroçam, arrasam, sem limites, sem contemplações, a doer, com pujança, arreganho, sede de vitória e destruição dos infelizes adversários.

Só há lugar para os vencedores, os poderosos, os talentosos, os melhorzinhos lá da rua, lá da cidade, lá do planeta Reebok…

Em Sesimbra vivemos noutro planeta, o planeta REBOQUE. Os romanos tinham os leões e os gladiadores no circo, os cruzados iam castigar os inimigos da fé lá para as bandas do oriente, os descobridores percorreram o mundo à procura de especiarias e sedas raras, os americanos foram à lua e nós em Sesimbra temos o espectáculo recente e palpitante dos carros a reboque. É o último grito em matéria de animação cultural. Há dais disseram-me que há três camiões rebocadores todos eles de donos diferentes. Não verifiquei a autenticidade da informação nem é fundamental saber se é bem assim. Certo é que volta e meia lá vai um a reboque por indicação oportuna da vigilante GNR sempre atenta, em cima da jogada.

E tal como o outro, ou pior ainda, também este planeta REBOQUE é medonho, implacável, sem misericórdia. Com uma pontinha de exagero dizem as más línguas que mal o turista se distrai a perguntar onde são as sentinas e já lhe estão a levar o carro. Essas mesmas línguas venenosas afiançam que os reboques esfregam as mãos que não têm a medir, nem a abanar, antes arregaçam as mangas quando é mostrado pela GNR o cartão vermelho para a operação «alça aí e leva atrás».

Sesimbra foi em tempos terra de macios costumes, poesia e mar rasinho. As saudosas armações da Greta, Burgau, Cova, Roquete, Pai Bernardo, Cozinhadouro, Remexida, tinham em comum a técnica da arte e da presença de uma barca a motor que rebocava os batéis todos, em fila indiana, direitinhos como meninos da colónia a caminho da praia.

A reboque era costume irem também as aiolas puxadas pelas barcas e esta palavra tinha até há pouco uma conotação simpática, evocando apoio, entreajuda, camaradagem. De repente, surge esta inovação com perseguição, espionagem, abordagem legal praticada por corsários modernos com o uniforme da lei e da autoridade instituída.

É o planeta REBOQUE já conhecido há muito noutras áreas, noutros espaços siderais, mas em Sesimbra só há pouco chegou. É a novidade maior a oferecer aos turistas. Há terras onde meninas bonitas oferecem flores e sorrisos, comerciantes fazem descontos, museus de portas abertas, sei lá, mil coisas para seduzir e cativar, desejar boas vindas, acolher e acarinhar. Em Sesimbra é fartar de rir, somos uns brincalhões originais, deixamos o turista estacionar ali no largo das sentinas, levamo-lo no rumo da antiga lota, mostramos-lhe o oceano, as admiráveis obras da doca, o que resta dos passadiços, as guaritas da fortaleza, perguntamos-lhe se já foi ao mar dos Ursos e, entretanto, já dois vigorosos mocetões, ágeis e hábeis agentes nada secretos sacaram do telemóvel e mandaram vir o famigerado rebocador. Pé ante pé, roda ante pneu, levam o carro (enquanto o turista com a mão a servir de pala busca no horizonte o mar da Pedra) e ele aí vai marginal fora que é um vê se te avias. Quando o chamam à realidade, o turista até acha graça, bate com as mãos nas coxas, rebenta os cós das calças a rir, julga que é para os apanhados, mas depois revolta-se e barafusta. Em vão, a lei é dura mas é lei, por mais abusiva ou intolerante que pareça.

Queixava-se um comerciante de um rapazola que todos os dias, mais do que uma vez, passa à porta do seu estabelecimento com uma motorizada barbaramente ruidosa com um escape daqueles cujo barulho só escapa aos ouvidos insensíveis da GNR.

Estranhava ele e estranha toda a gente que, há tantos anos, circulem por aí milhentas motorizadas com escapes ruidosos que incomodam dia e noite, irritam e revoltam.

Ninguém entende por que razão a GNR não multa, não obriga a reparar os tubos de escape. Ninguém compreende a impunidade, a complacência da GNR que faz ouvidos de mercador. Será que não se apercebem? Um tubo de escape transformado vê-se e, sobretudo, ouve-se. Mas mulher honrada não tem ouvidos e a GNR deve ser muito honrada, pelos vistos, não pelos ouvidos.

Dizia-me esse comerciante que gostaria de ter uma explicação para este mistério. Talvez valha a pena ir entrevistar o responsável da GNR, não sei. E o responsável pelo pelouro dos transportes da Câmara não terá algo a dizer? Poluição sonora, com quem é, a quem está entregue esta pasta?

E a quem diz respeito a circulação de motas nas praias do Meco que põem em risco a integridade das pessoas?

Um velho pescador queixava-se de que já não há esplanadas nem largos em Sesimbra. Os cafés e os restaurantes ocupam grande parte de pracetas, becos, passeios e largos em proveito dos comerciantes e com prejuízo para o resto da população.

Com que direito uma só pessoa priva muitos milhares de um largo? A nossa terra está à venda assim aos bocados? Beneficia a Câmara, enche-se o comerciante e prejudica-se assim a esmagadora maioria das pessoas. Com que direito? – Perguntava-me o velho pescador. E eu não consegui explicar-lhe. Será que alguém da Câmara poderá esclarecer? Será que cada sesimbrense pode alugar um bocado da sua rua em frente à sua porta? Ou é preciso ser comerciante? Então e os outros? São empurrados para o meio das ruas onde os carros passam sem descanso enquanto os passeios estão todos ocupados por outros carros.

A nossa terra está invadida, ocupada pelos automóveis e o reboque não é a solução. Abundam as motos de quatro rodas nas praias e em estradas do campo, são as motos de água, os jipes que parecem carros de assalto, é um mundo demoníaco, impiedoso. Maior é o mérito do Aurélio, que teima em andar de bicicleta, esse meio de transporte da idade da pedra que por enquanto não correr risco de ser rebocado pelos Rambos do estacionamento de alto risco.

O tal comerciante está a perder a paciência e receia que estes repetidos reboques afugentem os turistas. Perante a verdadeira agressão das motorizadas acha ele que a melhor solução é o remo. Fiquei aliviado porque acho que o desporto é uma boa forma de canalizar certas tensões, descomprimir, esvaziar, respirar fundo.

E felicitei-o porque o remo é de facto um belo desporto. Ah, o remo, a galhardia, o romantismo, a emoção, o colorido das regatas de Oxford e Cambridge, disputadas palmo a palmo por jovens vigorosos, troncos de estátuas gregas, músculos salientes, ventre espalmado, abdominais de aço, coxas magníficas.

Ah, o remo, os charutos poéticos do tio Abel em passeios à volta do Numância.

Ah, sim, o remo é um hino à luta do homem com o mar, instrumento nobre, símbolo da vontade de ir além, de rasgar horizontes, de triunfar no combate leal contra corrente, ventos e Adamastores de oceanos nem sempre pacíficos.

Ah, o remo, que feliz iniciativa, que bela escolha fez o meu amigo. E por isso me apressei a felicitá-lo e bem confuso fiquei quando depois de lhe ter lançado este belo discurso sobre as virtudes do salutar desporto ele desatou a rir e exclamou:

«– Desporto? Remar? Tu estás mas é maluco! Eu vou é ficar aqui à espera do gajo da motorizada e dou-lhe é com um remo nos cornos!!»

É assim, vá lá a gente armar em poeta. Bem tentei acalmá-lo mas só pensa no remo, meteu-se-lhe aquilo nos…, na cabeça, que querem vocês?

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*Publicado originalmente na edição de Julho de 1994 de O Sesimbrense.

2 comentários:

  1. Eis como se verbaliza de forma irónica e impiedosa a maneira de sentir de muito sesimbrense (natural ou apenas residente).
    Quantas vezes dei por mim a praguejar baixinho contra os "voadores" de motorizada que passavam à minha porta a altas horas da madrugada.
    E também eu tive o carro rebocado do largo das "sentinas", num fim de semana em que lá o deixámos para ir almoçar ali perto com uns amigos, (ingenuamente fiados num velho pescador que garantia estarem os gnrs a almoçar também àquela hora)...

    Ri-me, sorri e acabei a dar uma sonora gargalhada com o excelente destino que iria ser dado ao remo...
    Saborosíssima prosa!

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Pérolas destas, escritas com sabedoria e arte, vão sendo muito raras.

    Mas trazem-nos à lembrança, em cada linha, o Autor, bem como a sua maneira de ser e de estar na vida.

    Boa noite, ó Mestre!!!

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