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quarta-feira, 7 de abril de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 5




Ícaro

António Cagica Rapaz

“– Ah, quem anda a escrever um romance é o Tomás.”

Era uma tarde deliciosa como só acontecem ao sábado, daquelas tardes em que o sol acaba por se pôr, vermelho em brasa, por trás da casa da Mafalda. Nessas alturas, gostaria de poder estar, ao mesmo tempo, no muro da lota e ver aquela bola de púrpura cair devagar para lá do farol. E voltar, a correr, para a Aiana…

O Miguel viera visitar-nos, o que sucede menos quando esperamos do que sempre que lhe apetece. E está muito bem assim. Viera deitar um olho à velha vinha revigorada por tardias chuvas e conversámos vagarosamente à espera do crepúsculo e das línguas de bacalhau.

O Tomás é publicitário, companheiro de infância do Miguel, cresceram juntos, e, com eles, cresceu também uma bela e saudável amizade, daquelas em que há partilha, confiança, cumplicidade, fraternidade e tudo quanto se sente sem se conseguir nem precisar definir.

“ – Já me deu a ler dois capítulos, é muito interessante. É uma história que mete um português de origem céltica e mafiosos espanhóis. Não é autobiográfica mas, curiosamente, há muito do Tomás no que li. Não sei como explicar, mas acho que aquilo é ele, é assim.”

O Tomás e o Miguel fazem-me, remotamente, pensar no D. Quixote e no Sancho Pança, aquele mais sonhador, figura esgalgada, pronto a desbravar mundos ao volante do seu decrépito e romântico “2 cavalos”. O Miguel é realista, desconfia de moinhos de vento, é seguro e determinado, positivo e estruturado. Os dois formam uma parelha admirável…

Ficou-me no ouvido a alusão às marcas, ao rasto da personalidade, do espírito do Tomás que se adivinha ou pressente naquilo que escreve.

Ao mesmo tempo, ocorreu-me a ideia de que o leitor que conhece o autor não é imparcial, antes procura (talvez até de forma inconsciente) sinais, referências, vincos pessoais de quem escreve. No fundo, a relação pessoal com o autor rouba neutralidade ao leitor, impede-o de mergulhar sem preconceitos na ficção, aguça-lhe a curiosidade, coloca-lhe uma lupa na mão.

Esta relação de proximidade pode falsear as perspectivas e destruir o equilíbrio e a equidistância indispensáveis a uma apreciação correcta.

Neste processo, cada um tem o seu lugar, e certa forma de intimidade pode afectar, tornar-se perniciosa. Ícaro queimou as asas de cera por se ter aproximado demasiado do sol…

Não sei se será bem assim, mas ocorreu-me a ideia de que o leitor, tal como o espectador do cinema, por exemplo, têm de fazer concessões, têm de se prestar ao jogo, aceitar as regras da ilusão e da ficção. Nenhum de nós espera que, em palco ou no filme, os actores morram de verdade. Ou que o realizador utilize sangue real em vez de um qualquer líquido avermelhado. Ninguém deve preocupar-se com a autenticidade do que nos é relatado, se o Edmond Dantès viveu ou não em Marselha, se o Conde de Monte Cristo existiu ou não. Talvez outro Miguel, amigo de Alexandre Dumas, tenha encontrado traços da personalidade do escritor na figura do Conde.

No fundo, o juízo de valor que fazemos de uma obra, seja qual for a sua natureza, é influenciado ou condicionado pelo facto de conhecermos o autor. E o nosso olhar não é imparcial.

Por outro lado, talvez devêssemos contentar-nos em representar cada um o seu papel, ou seja, mantermos uma certa distância em relação ao artista. Podemos admirar um actor durante anos ou perder essa admiração porque um dia o vimos perdido de bêbado numa discoteca. Há relações de ordem afectiva que funcionam bem enquanto cada um fica no seu lugar, até se ultrapassar o limiar perigoso da intimidade. Ou se arrancar a máscara, pondo um termo à ilusão e ao mistério.

Uma das razões do enorme fascínio que o carnaval de Sesimbra exercia, advinha do jogo de ambiguidade, dos lances cruzados de luz e sombra, realidade e mistificação, provocação e irreverência. A queda da máscara punha fim ao sonho, à delícia da sugestão e da fantasia, ao devolver-nos à crua banalidade do quotidiano. O fim da ilusão acontece, por vezes, quando acaba o namoro e se entra na rotina, sem flores, sem poesia, sem ternura, sem romance. Quando deixamos o nosso lugar na plateia ou na bancada lateral, quando passamos para o outro lado, quando saltamos para o palco, quando furamos a tela, quando nos equipamos no balneário e vemos de perto aqueles que foram nossos ídolos, então, aí, caem-nos os braços de desalento, ficamos mortalmente desiludidos. Recordo uma tarde, no estádio da Luz, em jogo contra o Benfica, em que ouvi jogadores da camisola gloriosa gozarem (à distância, claro) os ingénuos e apaixonados adeptos do clube. Já os cultores da Arte pela Arte achavam que o contacto com a realidade avilta o artista. O mesmo pode ser válido para qualquer de nós, quando entramos em círculos de maior intimidade, correndo fortes riscos de desilusão.

Ao conhecer por dentro o mundo do futebol (que tanto me deslumbrava na meninice) vi caírem inúmeras máscaras. Nas nossas vidas, com os nossos familiares, com os nossos amigos, a fronteira da desilusão situa-se muitas vezes no campo minado dos cifrões, das coisas materiais que provocam, em muitos casos, a queda das máscaras. E então ou há a dignidade da ruptura ou se afivela nova máscara, para um faz de conta, paz podre ou harmonia postiça. Por isso, deixemos trabalhar os artistas, limitemo-nos a vê-los em cena, maquilhados, equipados, fazendo malabarismos com a bola, maravilhas com o pincel, primores com as palavras, fascinação com a voz. Não procuremos saber se a pistola do actor dispara bala real ou pólvora seca, não nos preocupemos em apurar se Sinatra era ou não mafioso. Contentemo-nos em deixar esvoaçar o sonho e a ilusão, ouvindo a voz incomparável do Francis Albert em crepúsculos mágicos de sábado.

Que importa saber se o Tomás tem ou não origem céltica ou se a sua sombra se recorta por trás esta ou daquela personagem. Não me perguntem se o Tomás existe ou se tudo isto não passa de pura invenção. Vivamos a vida como ela vem, não nos aproximemos demasiado do sol…

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*Publicado originalmente na edição de Abril de 1999 de O Sesimbrense.

2 comentários:

  1. Foi depois de ler esta crónica que me dei conta de como, no nosso país, há "Ícaros" para todos os gostos...
    "Que País É Este", realmente?

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Deslumbrante!!!

    Curvo-me perante a genialidade da palavra solta!

    Boa noite, Ó Mestre!

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