__________________________________________________________________

segunda-feira, 29 de março de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 3




Portão verde

António Cagica Rapaz

O pátio é pequeno, pavimentado a cimento bruto, o pio da roupa num canto, um armário velho perto da janela, a gaiola do pintassilgo junto à porta e meia dúzia de vasos alinhados contra a parede.

De Inverno, o menino costumava encostar-se às vidraças, a olhar a chuva, horas a fio. A água escoava-se pelo rego, era a descer, para a rua, até ao mar que rugia lá em baixo, na cova funda. Por vezes, em dias de vendaval, quando as ondas galgavam a muralha, imaginava que o mar pudesse subir a rua e entrar pela casa dentro. Mas logo se sentia reconfortado e em segurança, ao contemplar o portão verde, de madeira rija, que resistira ao ciclone.

O pátio era o seu mundo, trazia do quarto os barcos de madeira e de cortiça, o carro de corda, os cubos da Majora, os livros velhos do pai, as bolas de aço e a palheta, as placas e os botões. Instalou o quartel num canto, junto à janela do quarto, armado com tábuas e folhas de zinco da Sopa. Isolou com barro amassado, a chuva não entra. Lá fora, o vento medonho, o mar estrondoso. E ele no quartel, aconchegado e seguro. Que viesse chuva, que roncassem as vagas, que assobiasse o vento, ele estava a salvo, no pátio, a casa ao pé, a mãe na cozinha, com o candeeiro aceso, o feijão com arroz ao lume. Só faltava o pai chegar para o mundo ser perfeito…

O portão da escola também era verde, mas de ferro. E havia grades à volta deste outro pátio, o de recreio. À sala de aulas, pelas janelas abertas, chegavam o chilrear dos pássaros, no jardim, vozes de mulheres que voltavam da praça e o ruído do motor de algum carro vagaroso. Ao longe, a serra, a tentação da evasão, olhares rápidos, ânsias de liberdade, apelos da praia, medos da régua, êxtases proibidos pela tabuada e pelos ditados. No livro de leitura, a contemplação repetida e sonhadora da página da lição sobre o luar de Agosto, o lavrador e a família, de mãos dadas, em contraluz, a bola branca enorme no céu azul escuro, imagem ideal, a paz, a pureza das coisas belas e simples…

O portão verde fecha-se à boca da noite. Pela janela da cozinha escoa-se uma luz doce que ilumina parte do pátio. A mãe já chamou, já é noite, está a arrefecer. Depois de jantar, o menino espreita pela janela do quarto. No canto, lá está o quartel, berço de sonhos, domínio intransponível, barca de navegações imaginárias, cantinho, retiro, esconderijo, jardim secreto. O mar está calmo, o céu sereno, e o portão verde, eterno e forte, protege a casa, garante a paz, aconchega e tranquiliza. O menino adormece com um sorriso nos lábios…

1998

2 comentários:

  1. A sensibilidade dum menino atravessa o tempo e consegue levar-nos a transpôr o Portão Verde...
    As emoções duma infância bem longínqua, expostas por um excelente contador de histórias.
    Outros tempos, sem dúvida.
    Acredito que haveria bem mais apreço por aqueles brinquedos simples do que há hoje por uma playstation ou um telemóvel de última geração...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

    ResponderEliminar
  2. Estas palavras são um aconchego para a alma do leitor que é semelhante ao sentido pelo menino que adormece com um sorriso nos lábios, tal como descrito pelo autor.

    Lindíssimo!!!

    Boa noite, Ó Mestre!

    ResponderEliminar