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terça-feira, 23 de março de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 2

O mar do campo

António Cagica Rapaz

Era no início dos anos 50. O ribeiro dos Torrões ia desaguar na praia, mas nós, exploradores de palmo e meio, ignorávamos o destino daquele fio de água límpida que retínhamos, aqui e ali, em represas improvisadas para mergulhos frustrados e caça inocente a rãs saltitantes.

Depois de termos encaminhado para os talhões, um após o outro, a água que o tio Júlio tirava à picota, íamos, o Julinho e eu, encosta acima, armar aos pássaros. Chegados ao alto, contemplávamos, num misto de estranheza e respeito, aquele mar imenso e revolto, com vagas poderosas que se desenrolavam com fragor na areia rija da praia a perder de vista. Ficávamos em silêncio tempos infindos naquela contemplação, maravilhados e intimidados. O Julinho nunca tinha ido a Sesimbra e eu tinha dificuldades em lhe explicar o nosso mar, o verdadeiro mar, o da Pedra Alta, ali mesmo em frente da rua dos Pescadores, quase à nossa porta, o porto de abrigo, os passadiços, a água doce, os destroços do Numância, a imponência da fortaleza, as aiolas baloiçando, dolentes, amarradas à popa das barcas ancoradas na baía, na quietude da manhã apenas quebrada pelo sino da igreja de cima. Esse, sim, era o mar, não aquela imensidão tumultuosa de ondas a rebentar em praia deserta a dois passos do pinhal. Não fazia sentido, ali era o campo, céu de pardais, não de gaivotas. Por isso lhe virávamos costas, em corrida vertiginosa, ladeira abaixo, até à cabana de canas de onde a tia Clarisse já nos chamava porque a sopa de tomate e batatas com pele esperava por nós. A minha mãe enchia-me, regularmente, a marmita com batatas fritas com ovos que eu partilhava com o Julinho. De tarde, íamos lavar as cenouras e os nabos, para a venda no Seixal quando, para lá do cabeço, a noite ia caindo sobre o mar e a neblina já se estendia sobre a praia do Meco…

1983

2 comentários:

  1. Lê-se uma página assim, a "ver" realmente aqueles dois mares, tão diferentes entre si.

    O meu, aquele de que eu gosto verdadeiramente, é o mar doce, o da Pedra Alta, o da Califórnia...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. É uma grande verdade, Ana!

    Estas crónicas do nosso Cagica transportam-nos logo para aqueles tempos e locais.

    E isso é... de Mestre!

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