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segunda-feira, 15 de março de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 1

Numância

António Cagica Rapaz



foto tirada daqui

Há muitos anos encalhado na maré vazia, o Numância gerou e alimentou lendas e fantasias, foi centro de atenções, presença insólita, navio fantasma, antro de conquistadores, contrabandistas, espiões infiltrados, porões de mistério, nau de corsários na praia do tio Abel.

A rapaziada olhava, com respeito e temor, as cavernas sombrias, ninhos de polvos gigantescos, safios temíveis, moreias dilacerantes, refúgio do capitão Nemo saído das “Vinte Mil Léguas Submarinas” que nos deslumbraram a toda a largura da tela do cinemascope, milagre que o Parque proporcionava em cada noite calma, enquanto baloiçavam os eucaliptos da cordoaria. Os aventureiros do colchão de borracha armavam-se até aos dentes, com baldes, pás e bóias à cintura, para a expedição da última esperança de encontrar uma sereia na casa das máquinas ou um polvo enrolado na barra de leme. Os limos enormes, linguados castanhos, criavam raízes na estrutura de chapa ferrugenta e formavam uma barreira assustadora.

O Numância era o nosso Adamastor, a nossa Atlântida, palco de aparições quiméricas do enigmático cavaleiro Emílio da Rocha Negra, senhor de Vintemilhas, mais conhecido pelo Corsário Negro que, ao leme do seu “Relâmpago”, rasgava a noite a coberto da espessa bruma do mar dos Ursos, rumo à ilha das Tartarugas…

Quando caíam os primeiros nevoeiros de Setembro que o Rafael soprava das ameias do Castelo, o Numância parecia emergir das profundezas medonhas. Mãos e barbatanas fustigavam as águas com redobrado vigor, acelerando o regresso do colchão de borracha, fugindo à borrasca, em busca da praia, “num’ânsia” de segurança que só acalmava quando, do alto da gávea, o gajeiro gritava “Já há pé!”. Extenuados, corações a bater, só descansávamos quando víamos surgir no horizonte a silhueta branca do Zé Tucha, apregoando “Há bolos ò pastéis!”.

Logo os corsários da pedra de Zé Manel interrogavam: “Então e pastéis também não são bolos?”.
O bom do Zé Tucha, pacientemente, lá nos ia explicando que não, que há diferenças, pastéis são pastéis, bolos são bolos. Porém, os malandrins queriam era conversa e, no dia seguinte, voltavam com a provocação. Mal soava o pregão “Há bolos ò pastéis” surgia a interrogação irritante: Então e pastéis também não são bolos?”.

Com o tempo, esgotavam-se os bolos, os pastéis e, naturalmente, também se esgotava a paciência do Zé Tucha, que respondia, fleumática e pragmaticamente: “A puta da tua mãe!”…

Era assim, na praia dos piratas, no golfo de Maracaíbo, linguagem rude, espada na liga, gancho afiado, pala preta no olho esquerdo, brinco e lenço, barba hirsuta, chapéu de pluma, perna de pau, bandeira içada com a implacável caveira ao vento, canhões assestados e nós assustados, vem aí o cabo do mar, esconde a bola, chuta prà água.

O Numância foi desmantelado pelo mar e pela dinamite, lenda diluída, sonho desfeito, presépio desmontado. A praia do tio Abel mudou-se para o Espadarte, rumo à Califórnia. E nós abalámos para a vida que a muitos arrastou para o largo. Às tantas voltamos ao porto, um tanto à deriva. Atracamos como podemos, a carta de navegação está desactualizada, a bússola tresloucada, fiamo-nos no instinto e na memória enferrujada, e mal reconhecemos as tabernas do cais. Só o mar não mudou…

1997

8 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Boa Noite, Cagica!
    E Boa Noite, Escriba!

    Em Noventa e Tal Contos se estende uma infindável rede de saborosas e nostálgicas lembranças, passadas ao papel por quem conhecia Sesimbra como a palma da sua mão.
    E cuja prodigiosa memória permitiu que, capítulo a capítulo, fossem citados - arriscava-me a dizer - "todos os nomes" de quem nasceu e viveu naquela belíssima vila piscatória.

    Excelente e merecida homenagem a um Homem como poucos.
    Aguardam-se com grande expectativa todos os postes que aí virão.

    Obrigada, meu caro Escriba.
    Um grande e comovido abraço

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  3. excelente iniciativa, da mais elementar justiça. Divulgá-lo-ei o mais que puder.

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  4. Grato à Ana e ao José Luís Espada Feio.
    As minhas saudações!

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  5. Que bela iniciativa , vou divulgar com todo o gosto.
    Muito bem haja.

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  6. Eu é que lhe agradeço. Saudações!

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  7. Finalmente consigo deixar aqui um comentário!

    Para dar ao escriba alento e renovar a alegria de o saber ao leme de um projecto fantástico de homenagem ao nosso AMIGO!

    Abraço fraternal e um beijinho à nossa... Ai, Ana.

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  8. Um abraço de gratidão ao João. Ele sabe porquê...

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