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segunda-feira, 22 de março de 2010

IN MEMORIAM, 3





A última carta (3.ª e última parte)

João Flamino

Foi nesses almoços que descobrimos bons vinhos (vá-se lá saber o motivo de a carta dos vinhos me vir parar sempre às mãos! Devo ter cara de alcoolizado mental! Ou então, bastava-me ser virtualmente o Zé Cuscopos para tudo isso se tornar tão natural como a nossa sede!), e longas foram as referências aos Calços do Tanha, que nos deram margem de manobra para muitos trocadilhos, daqueles feitos pelo Mestre António ou por nós próprios, e que nos deliciavam intensamente, tão espontâneos eram os sorrisos, os olhares de cumplicidade na marotice e a brejeirice inofensiva que o inundavam e o rodeavam.

Recordo, igualmente, o dia em que lhe comuniquei que iria dar-lhe um abraço à Feira do Livro de Sesimbra, que se realizava na Fortaleza e onde também viria a encontrar a Ana, que por lá passou para nos ver e dar um abraço de incentivo ao nosso António, mesmo sabendo nós que estava ela própria a viver um momento difícil na vida pessoal, com a doença grave de um familiar muito próximo. Passado pouco tempo estava a receber um telefonema seu a dizer que iria petiscar a uma famosa esplanada, local com uma vista única para o mar de Sesimbra, com a Margarida, e que teria muito gosto que eu e a minha mulher também participássemos nesse petisco. Que fizeram questão de nos oferecer, antes de rumarmos, todos, às instalações da Feira do Livro, em mais uma demonstração da personalidade do casal. Foram totalmente infrutíferas as minhas tentativas para pagar a despesa e, para além do prazer da companhia, da qualidade das ovas, das amêijoas e dos caracóis e da inenarrável sensação que nos assolou a todos quando o sol começou a aproximar-se da linha do horizonte, conferindo tons únicos à pintura paisagística que apenas um génio poderia saber traçar, ainda teve tempo para me presentear com um livro, que comprara de propósito para mim. Guardo-o com uma estima tal que até me custa relembrar a gargalhada sincera que soltei quando li o seu título: Com os copos, de Miguel Esteves Cardoso. Logo seguida da emoção sentida, na mestria da palavra, quando dei por mim a ler a dedicatória, escrita pelo seu próprio punho, que reza da seguinte maneira: “Para o João… ou o Zé… ou lá como é, com um grande abraço do Caghica . Agosto 2009.”.

Como ele bem sabia, todos os meus textos jocosos, com muita ironia à mistura, e mesmo os mais sérios, que publicava no meu blogue, sob o disfarce de Zé Cuscopos, terminavam com a expressão, matreira, Hic Hic Hurra. Daí à brincadeira, puramente fabulosa, com o próprio nome foi apenas um pequeno passo de mestre.

Depois, estive presente com o Joaquim e com o Pedro na apresentação do seu último livro, feito de forma genial com um passeio de barco ao largo de Sesimbra, terra que sempre transportou no peito, num coração onde o sangue era também mar. Recordo o brilhante discurso do Pedro e as palavras, sempre sensatas e sábias, do António, num momento em que nada poderia fazer prever o que se seguiria, num ápice.

É que, no dia 30 de Outubro de 2009, a confraria teve a última ceia em redor do seu mestre. Já nesse dia, em que o António chegou atrasado (o que nele não era normal), e vinha acompanhado da Margarida (o que, isso sim, já era normal), logo nos primeiros contactos, e sem que o tivéssemos revelado até ao final do almoço, tanto eu como o Joaquim ficámos muito apreensivos. Havia ali qualquer coisa que não estava bem no António. O seu olhar estava mais ausente. A sua fala mais pesada e longa. A exposição das suas ideias não era feita com aquela garra, aquela energia, aquela vivacidade e força de vida que dele brotava normalmente. Aliás, durante todo o almoço manteve-se muito mais sereno do que o habitual, participando apenas esporadicamente nas conversas, como se estivesse um bocado afastado do que o rodeava ou extremamente cansado.

O certo é que, findo o almoço, tanto eu como o Joaquim, numa pequena conversa a dois, demonstrámos a nossa estupefacção pelo que tínhamos acabado de presenciar e decidimos averiguar. Essa foi a razão para o meu telefonema para o Pedro que, igualmente, de nada sabia e que apontou como possíveis causas as dores de costas que o assolavam e a falta de descanso.
Foi o Joaquim quem me comunicou a recepção de uma mensagem, por correio electrónico, dirigida a todos nós, recebida pouco depois, em que o António informava que lhe tinha sido diagnosticado um tumor no cérebro e que iria dar entrada num hospital de Lisboa para uma intervenção cirúrgica. Nela, para além de justificar o sucedido através da expressão “as coisas são o que são”, ainda estava presente a vontade de nos voltarmos a reunir para almoçar, uma vez tudo ultrapassado, como que a dar-nos a nós força para o que se seguia.

O que se seguiu foi tão violento como rápido.

O António embarcou para a grande e derradeira viagem em 13 de Dezembro de 2009.

Foi o Pedro, com quem mantive os maiores contactos nessa fase difícil para todos, quem me telefonou a dar a notícia que nunca, nenhum de nós, quis receber.

Deixou-nos, a todos, mais pobres, por já não o termos entre nós, mas tornou nossas vidas muito mais ricas durante o tempo em que nelas permaneceu.

Era uma pessoa notável e de quem eu gostava como se fosse meu irmão mais velho, e se o escrevo agora é para que não fiquem dúvidas daquilo que sentia por ele.

O António não era só isso, era muito mais do que isso. Era um ser humano fora de série e que, no momento em que escrevo estas linhas, me faz deixar escapar uma lágrima de saudade profunda. Estou imensamente grato ao destino por ter tornado possível que as estradas de nossas vidas se cruzassem a dado momento, mas estou igualmente triste por não nos ter deixado caminhar nelas, lado a lado, durante mais tempo.

Penso, também, que não existirão muitas palavras capazes de o descrever com propriedade. E todos os meus esforços nesse sentido se revelariam inúteis ou ficariam muito aquém do desejado.
Resta-me, pois, sentir a tua falta, querido AMIGO, na certeza de que estarás para sempre presente em meu coração e na minha mente ao longo da linha que me conduzirá, inevitavelmente, até onde já te encontras.

É o meu único consolo, sabes?

Acreditar que quando não te encontrar, por já ter parado o meu coração e a minha mente não conseguir suportar mais a vida em meu corpo físico, terei do outro lado, à minha espera, alguém para me receber de braços abertos e me levar, por entre um trocadilho e outro, de sorriso aberto no rosto, ao destino final das almas, mostrando-me os cantos à casa…

Obrigado, António, por tudo e… boa noite, ó mestre!!!

Escrito em Lisboa, entre os dias 16 e 17 de Março de 2010.

1 comentário:

  1. Os "Calços do Tanha" ficarão sempre ligados ao meu "baptismo" naquela pequena confraria, depois de ter já lido variadíssimos trocadilhos alusivos à marca, nas caixas de comentários da "Magra Carta" e da "Aldeia Lusitana" (antes da sua implosão...).

    Absolutamente deliciosa essa dedicatória de Agosto, escrita pelo Mestre dos jogos de palavras!
    Indo um pouco mais atrás, a esse almoço a que ele levou as "duas surpresas" ( a Margarida e o Manuel António), eu vejo aí mais uma demonstração da sua natural afectividade para com aqueles que considerava seus amigos, logo, dignos de partilhar a mesa de um quase aniversário, juntamente com duas das pessoas mais importantes da sua vida.

    Da "última ceia" ficaram-me apenas lágrimas retidas.
    Regressei a casa com a cara teimosamente molhada.
    E a minha última recordação é a de uma figura alta, muito esguia, sempre sem perder a natural elegância, a dobrar a esquina dum soturno corredor do Hospital de S. José.

    Até sempre, então!

    E... BOA NOITE, Ó MESTRE!!!

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