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domingo, 21 de março de 2010

IN MEMORIAM, 2


A última carta (2.ª parte)

João Flamino
Regressando ao António, aos poucos fomos voltando a encontrar-nos, sempre com o Joaquim a, orgulhosamente (para ele e para nós), marcar presença e, logo num desses primeiros reencontros, agendámos um almoço para um restaurante perto da Casa dos Bicos. A localização era explicada pela presença do seu companheiro de blogue, o Escriba, a quem dava mais jeito o almoço por aquelas bandas. Nada a objectar, o que interessava era o convívio e ainda tinha o créme de la créme que era conhecer quem partilhava as linhas com o António Carteiro, pois sabe-se que gente de bem atrai a si mais gente de bem.

À boa maneira das fitas de cowboys, onde as surpresas agradáveis nos estão reservadas para o final, eis que pouco depois chega o tão esperado Escriba, o Pedro. Ele olha para mim, eu olho para ele e à sua saudação inicial eu apenas respondo, com um sorriso estampado no rosto: “- Olá Pedro!”. De repente, o Pedro olha mais aprofundadamente para mim e diz: “- Mas eu não te conheço?...”. Em mais uma das reviravoltas da vida, numa daquelas coincidências em que ela é tão pródiga, o Escriba que ali estava, ao lado do nosso Carteiro, era um velho conhecido dos tempos em que ambos frequentávamos os corredores sombrios e poeirentos de uma Faculdade lisboeta. Nessas alturas os nossos contactos tinham sido esporádicos, mas foi um enorme prazer, para a alma, voltar a vê-lo e poder reatar o contacto perdido. É verdade, afinal o amigo do peito de quem o António me falara emocionado, dizendo (verdadeiras) maravilhas a seu respeito, era comum. E nenhum de nós o suspeitara sequer…

E os almoços que inicialmente eram a três, passaram a realizar-se a quatro, estendendo-se assim a confraria em momentos que, para todos, eram de puro repasto para o corpo e para o espírito, se bem que, em determinadas alturas, por imperativos laborais, o Pedro não tenha podido estar presente.

E foi numa dessas alturas em que outro curioso episódio sucede. O António, o Joaquim e eu fomos almoçar à Churrasqueira do Campo Grande, onde tivemos de nos bater com um bacalhau assado com batatas a murro e feijão frade, regado a bom tinto e, por entre as deliciosas histórias com que o António nos ia brindando, surge uma a respeito daquele que ele considerava um verdadeiro felino entre os postes. Chamava-se (e ainda se chama, felizmente) Vítor Manuel e, para melhor esclarecer quem nos lê, jogou ao lado do nosso António que teve uma passagem distinta por vários clubes de futebol, desde o Grupo Desportivo de Sesimbra (onde começou), passando pela Académica de Coimbra (clube que muito o marcou), pela CUF e pelo seu amado Belenenses, onde terminou a sua carreira de futebolista. Ora, o caso do Vítor Manuel prendeu logo as nossas atenções, não apenas pelos rasgados elogios às suas capacidades feitas pelo nosso António, mas sobretudo por este ter sofrido, num fatídico jogo em Matosinhos, contra o Leixões, uma lesão de tal maneira grave que o incapacitou definitivamente para a prática do futebol (numa disputa de bola, num lance perfeitamente inofensivo, um jogador do Leixões lança-se contra o Vítor e dá-lhe uma violenta joelhada na cabeça, deixando-o logo inanimado e relegando-o para um estado de coma). No meio daquele episódio ficou a pena de não saber o que teria sido feito do Vítor Manuel.

Ora bem, voltando às coincidências, o meu compadre Joaquim é um homem do fado (e não se limita a ouvi-lo) e, nessa mesma noite, vai a uma sessão de fados à Tasca do Chico, no Bairro Alto. Conversa puxa conversa e quem é que ele descobre lá, a cantar o fado? Exactamente, o Vítor Manuel, de quem estivéramos a falar à hora do almoço. Aproveitou a ocasião para lhe falar do Tó Manuel (nome pelo qual era carinhosamente conhecido o António) e logo ali ficou alinhavado reencontro, que se deu no almoço seguinte que realizámos, novamente naquele restaurante perto da Casa dos Bicos. Foi bonito, pois o António nem suspeitava e apenas sabia que viria um homem do fado almoçar connosco, o que nem estranhou por saber que o Joaquim era um homem desse meio.

Não voltou a ser possível ter o Vítor em mais almoços nossos, mas foi muito gratificante poder assistir ao abraço dos dois.

Almoços esses que se foram tornando num costume, à razão de um por mês, para não se perder o contacto, e que foram, igualmente, sendo alargados a outros convivas.

Um deles foi a Ana. Que, como é evidente e tal como todos nós, também logo se deixou encantar pelo nosso António. Resta referir que a Ana também chegou do meio virtual e é pessoa que, tendo-se deixado encantar por nós, também logo nos encantou, pela sua maneira de estar, pela sua esmerada educação, pela sua simpatia e bondade e por, no fundo, estar em perfeita comunhão com o espírito de grande alegria e amizade que enchiam verdadeiramente a mesa nos dias dos almoços (a comida e a bebida eram apenas o pretexto).

Com tantos interesses em comum, e com a amizade a fortalecer-se, foi normal que, em breve, o grupo de quatro habituais convivas tivesse passado a cinco (com a chegada da Ana, que passou a participar em todas as iniciativas comensais que se seguiram) e fosse, esporadicamente, sendo alargado em virtude das circunstâncias.

Foi assim que, em determinada altura, o nosso António nos informa que vai trazer duas surpresas para um dos almoços (o mais concorrido de sempre). E essas agradáveis surpresas foram, nem mais nem menos, que a Margarida, sua simpática mulher, e o seu melhor amigo, dos tempos de infância, o Manuel António, que a todos, novamente, nos souberam encantar. António Manuel e Manuel António, os velhos amigos de sempre, ali estiveram a partilhar alegrias e histórias, juntando-se naturalmente ao convívio e bom ambiente que era já habitual naqueles momentos de pura delícia para todos os que neles tinham o orgulho e prazer de participar.
É um facto que as coisas boas desta vida são tão simples que, por vezes, só à distância e quando já não nos é possível repeti-las, pelo menos com todos os intervenientes fisicamente presentes, é que lhe reconhecemos qualidades suficientemente fortes que nos levam a recordá-las com os sentimentos à flor da pele. Talvez tenha sido o que sucedeu com os almoços, com os nossos almoços, que eram tão alegres, tão bons, tão intensos e perfeitos na sua simplicidade.

(continua)

2 comentários:

  1. Este "In Memoriam" tripartido cuja origem é o coração de ouro do nosso João, trouxe-me várias vezes um aperto à garganta.
    Por estar tudo tão bem descrito, por sentir aqui aflorar uma nostalgia salpicada de pormenores curiosos, uns do meu conhecimento, outros não, o que veio a tornar a leitura ainda mais interessante.

    Confesso que, tendo sido "abordada" exactamente da mesma forma (com o discreto pedido do E-mail, tal como sucedeu com o João), andei umas semanas hesitante já que, tendo embora uma idade considerada respeitável, nasci com um "desconfiómetro" acoplado.
    O que me levou a andar umas semanas a "encanar a perna à rã" enquanto não me resolvia a aceitar o convite para almoçar com umas pessoas que até então conhecia apenas virtualmente.
    E o nosso Amigo, com uma paciência evangélica, ia assinando os seus comentários lá no blogue como "Paciente Inglês"...
    Enfim, lá me decidi a comparecer ao primeiro almoço e em muito boa hora o fiz.
    Quem me dera que isso tivesse acontecido uns anos antes.
    A vida assim não quis e os poucos repastos que compartilhei com aquele grupo foram um lenitivo incomparável para a fase atribulada que eu estava a viver.
    A todos fico eternamente grata por isso, muito particularmente a esse Amigo que tão cedo resolveu deixar-nos.

    Um beijinho para o Pedro, outro para o João que é um verdadeiro gentleman.

    E... BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Apenas para retribuir à querida amiga Ana o beijinho aqui deixado.

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