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sábado, 20 de março de 2010

IN MEMORIAM, 1


A última carta (1.ª parte)

João Flamino

Quando o meu estimado compadre Joaquim me fez saber que gostava que eu desse uma vista de olhos por um blogue que era feito, a meias, por duas personalidades de Sesimbra, jamais eu suspeitei o quanto tal iria influenciar a minha vida pessoal.

Quando dei à costa, após alguma borrasca fruto da nabice própria de quem, nem sequer sendo de Sesimbra, só a custo navega nesse mar aparentemente calmo que é a Internet, aportando ao magra carta, longe estava eu de pensar que, pouco tempo depois da descoberta, já estaria a ser colonizado (eu, que fora, assim o pensava, o descobridor) pelos seus autores.

A vida tem destas coisas e o certo é que, após ter iniciado uma troca épica, na versão deste pobre escriba (atenção que não estou a tentar furtar o lugar a ninguém), de galhardetes, em que as linhas breves de um João100Terra, escritas à pressa em bilhetes postais electrónicos caíam, certeiras e fulminantes, numa estação de correios onde um certo Carteiro, na altura ainda com a face oculta, ao lê-las, percebia que era ele o destinatário e, quantas vezes, pouco depois lá vinha a resposta, no mesmo tom das palavras inicialmente dedilhadas no teclado, a revelar uma sintonia de opiniões e de maneiras de estar na vida que nos foi aproximando, irresistivelmente, como se fossemos um íman a atrair metal.

Quantos sorrisos e quantas gargalhadas não dei nesses tempos, sozinho, sentado em frente a um computador, olhando para um monitor que era apenas a tela onde duas vidas, duas almas, se encantavam mutuamente, dado o caminho rectilíneo que o nosso percurso seguiu, de maneira inevitável e sem qualquer pressão (como deve suceder entre amigos), até finalmente se encontrarem face a face.

O virtual, pese embora os seus perigos sobejamente conhecidos por muitos, não será inimigo do real quando os virtuais amigos desejam realmente conhecer-se, o que passou a fazer todo o sentido após uma troca quase diária de correspondência entre este pobre escriba e o mais nobre carteiro que alguma vez conheci.

O encontro foi aprazado, imagine-se, através do próprio blogue, prometendo o carteiro que se ali fosse deixado o endereço do correio electrónico, uma vez que todas as mensagens eram previamente lidas antes de validar a sua publicação nos comentários aos textos, o mesmo não seria divulgado e a resposta já seria dada por essa via, longe dos olhares virtuais, pois nem todos poderiam revelar-se aconselháveis.

Para além do endereço do correio electrónico essa mensagem, que quero imaginar transportada por uma alva e branca pomba, levava no bico o número do telemóvel e o meu nome próprio, pelo que em breve aquele tocava estridente. Deixei-o repetir o toque antes de o atender, pois todos sabemos, pelo menos desde que vimos o filme no cinema, que o carteiro toca sempre duas vezes e, do outro lado, ouvi com satisfação a voz da amizade a chamar-me, dizendo por outras palavras que estava em contacto com alguém que me iria marcar para todo o sempre, que deixaria em mim um traço genuíno de bondade e de compreensão, de comunhão de pensamentos e de identidades, que será de difícil entendimento por parte de quem nunca experimentou tais sensações.

A apadrinhar o nosso primeiro encontro, ali ao Saldanha, junto ao edifício já muito transformado do Monumental (onde, em criança, com os meus pais, fui ver um filme do Popeye, cujo personagem era interpretado por, penso eu, Robin Williams, que muito me agradou), que recordo com grande emoção, lá estava o mestre dos correios, o António, ladeado pelo meu compadre Joaquim (pois então), que assim testemunhou, embevecido, aquele primeiro encontro.
É simples descrever o homem que, finalmente, dava a cara pelos textos de grande sabedoria e magia literária, com uma ironia invulgar e um humor à prova de tudo, que deixava publicados na magra carta e que, mais tarde o soube, eram apenas uma ínfima parte do espólio de uma vida a escrever no mesmo tom, de uma vida retratada no seu último livro, em que descreve o percurso de seu pai e o entrelaça com episódios marcantes da própria vida.

O seu sorriso simples e sincero, acompanhado de um aperto de mão vigoroso, contagiaria qualquer um e eu, obviamente, não poderia ser uma excepção a essa regra que o companheirismo instituiu muito antes de qualquer de nós ter nascido para este mundo.
Lembro-me de termos ido almoçar a um restaurante de um hotel nas imediações da Latino Coelho e de logo aí ter nascido uma empatia tão grande que nem os rijões (epíteto feliz, num trocadilho onde revelava toda a sua sagacidade na forma como baptizou os rojões) à moda do Minho foram capazes de impedir que novo encontro fosse marcado, sempre à mesa, sempre rodeados de comida e vinho, pois a vida quer-se assim, cheia de prazeres (e havia que fazer jus ao meu nome virtual, Zé Cuscopos).

Logo nesse primeiro encontro, onde a conversa acabou por fluir de forma perfeitamente normal e agradável, entre uma garfada e um bocado de vinho para acompanhar a carne, fiquei a saber que o companheiro da magra carta se chamava Pedro e também era de Sesimbra. Dados que, na altura, assimilei sem lhes dar a devida importância e que, mais tarde, vieram a constituir outra agradável surpresa, demonstrando que esta vida tem estradas que desembocam, frequentemente, em outras vidas e nos levam a locais e pessoas que não esperamos e que nos tornam ainda mais felizes e surpresos.

Um belo exemplo do que escrevi ainda recentemente sucedeu, pois em deslocação a África, por força de obrigações laborais, contactei com uma série de pessoas. No dia em que regressava a Portugal, ao apanhar o avião, na sala de embarque, deparo-me com uma dessas pessoas, e foi agradável o reencontro. Obviamente, mantivemo-nos juntos até à escada que dava acesso ao interior do avião e, antes de a subir, despedimo-nos cordialmente e fizemos votos de nos voltarmos a encontrar no destino. Qual não é o nosso espanto quando, poucos segundos depois, estamos sentados lado a lado, perdidos de riso e incrédulos na forma como, tendo sido adquiridas em dias distintos, algo fez com que, num avião com mais de cem passageiros, a viagem fosse feita junto a um conhecido, tornando menos monótonas as seis horas de duração.

(continua)

1 comentário:

  1. Vários parágrafos desta carta poderiam ter saído da minha mão.
    Porque foi exactamente da forma aqui descrita que cheguei ao conhecimento "real" do Amigo com que tão bem nos identificávamos virtualmente.
    Só que ainda continuo inconformada com o pouco tempo em que me foi permitido o gosto de fazer parte daquelas pequenas tertúlias gastronómicas em que a comida era o menos importante.

    Fico, com o maior interesse, à espera da continuação, deixando um abraço para o Escriba, outro para o Zé Cuscopos.
    Até lá...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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