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quinta-feira, 25 de março de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 3


A Cotovia* (2.ª e última parte)

António Cagica Rapaz

Por uma bela tarde de verão, a tia Stella tomou corajosamente o volante do velho Anglia preto e a expedição arrancou com destino à longínqua Cotovia. Estaríamos talvez em 1953 e o tio Jójó tivera a insólita ideia de construir uma casa naquele ermo, longe do mundo civilizado que assentava arraiais no Central e no Grémio. No seu desejo de evasão fora acompanhado pelo tio Né, o Hernâni Baptista, garboso comandante dos Bombeiros que no meu espírito evocava igualmente a fábrica de conservas da Caveira.

A Cotovia era outro mundo, um castelo de aventuras dos cinco que em casa do tio Jójó eram três. Com o Luís Filipe eram quatro, como os três mosqueteiros. O Luís Filipe era o pupilo do Exército muito digno no seu uniforme, sempre de sobrancelha carregada e dons apreciáveis para o desporto. Eu desembarcava naquele universo, com admiração e deslumbramento. As bicicletas, as espingardas de pressão de ar, os mil brinquedos que nunca tive, uma lareira, um ar de festa, uma felicidade contagiante, tudo me deixava seduzido.

Mas a vida é cruel e naquela Cotovia maravilhosa, apesar da protecção sadia dos pinheiros, naquele presépio de sonho, o Luís Filipe viu partir a mãe numa idade em que se não é suficientemente forte para achar normal nem tão infantil que não se fique traumatizado. Vi e senti a alguma distância o seu drama, a sua revolta, a injustiça de um destino que parecia cor-de-rosa…

Nas nossas corajosas pescarias na doca, encavalitados num colchão de borracha (sem sabermos nadar), ou perto do calhau da Cova com o Padre João, nunca nos debruçámos sobre questões de ordem metafísica. Apenas nos habituámos a entender-nos sem grandes conversas, numa complementaridade que não mudou. Ele fala pouco, eu não me calo e ambos pensamos o mesmo, sentindo de igual forma. Chama-se a isto amizade, cumplicidade. Regista-se. Não se explica. Terá sido essa cumplicidade que me levou a ficar em sua casa nessa tarde em que, como dizia, a tia Stella conduziu a expedição à misteriosa Cotovia. O entusiasmo foi enorme e alguém lançou a ideia de irmos armar aos pássaros no dia seguinte, de manhã. Para tanto era melhor ficarmos para dormir. E ficámos. A minha irmã até acabou por ficar na família. Para mim era mais difícil, já que eles eram todos machos, na Cotovia…

Aí nasceu a minha paixão pela Cotovia, ou melhor, por uma certa forma de vida, por uma atmosfera especial que ali se respirava. A Cotovia era a fuga ao bulício de Lisboa durante a semana e à agitação de Sesimbra ao sábado e domingo. Era um retiro, um paraíso, uma estalagem, um convento, uma coutada, uma mansão, um oásis.

As primeiras chuvas do Outono desencorajavam os últimos turistas. Era o momento de voltar a vestir as camisolas grossas que a tia Fernanda fazia à mão. O vento, arauto do inverno, trazia consigo um gosto impreciso que a chuva revelava. Era chegado o tempo do peixe seco, dos carapaus doirados ao sol do verão. O apelo era irresistível e aposto que o tio Jójó não trocaria os primeiros carapaus secos do Outono por uma lata de caviar. A tradição venceu os anos e passei dos melhores domingos da minha vida na Cotovia com os da casa e o Luís Filipe que vinha dar uns toques cabazeiros nos matraquilhos onde ele e o Joca era fregueses certos do Zé e deste vosso servidor. Enquanto a Carmelinda e a tia Fernanda limpam a loiça, o António adormece agarrado à telefonia a ouvir o relato e o tio Jójó troca dois dedos de conversa com o Jorge até o Chico chegar.

O compadre Artur não deve tardar e o tio Nuno vê-se aflito com a «Miss» que procura cravar o dente no pudim que vai acompanhar o café por sua vez iluminado pela espectacular bagaceira «Patricius», segredo do mestre Jorge. O Jorge é o último fidalgo proletário da Cotovia, o último patrício de casta antiga, com a sua filosofia pura da vida que ele manobra com fleumática e cativante sabedoria.

O tio Jójó é o meu senhor feudal que não ergue a ponte levadiça como fazia Conrado, o lobo, o vilão das aventuras do Cavaleiro Branco, Jean de Dardemont, que eu devorava com avidez.

Na Cotovia eu encontrava recriado o ambiente medieval com um senhor feudal bondoso, apaixonado pela caça e pelas artes. O seu castelo estava sempre aberto aos amigos, vassalos ou suzeranos, peregrinos (como eu) de passagem ou membros da numerosa família.

O Jorge nunca tinha fome, já tinha sempre comido mas acabava infalivelmente por petiscar qualquer coisa connosco.

O compadre Artur deixou ao António uma recordação inolvidável com as sardinhas que trouxe de Cascais naquela almoçarada pantagruélica em que o admirável Duque se juntou à nobreza da casa.

O serviço militar é uma viragem na nossa vida. Em vésperas de entrar em Mafra almocei carapaus secos com o Jorge no Casal, à beira do alambique. Foi o fim de uma época, de um capítulo de aventuras, como se eu, leitor do «Cavaleiro Andante», tivesse por artes mágicas penetrado no universo de Jean de Dardemont para viver a seu lado o fragor das lides, percorrido o caminho exaltante da epopeia.

O tio Jójó lá continua, Deus o conserve por muitos anos com a sua bondade, a sua linhagem de figura nobre, o seu sentido estético da vida e o gosto sensível pelas coisas e valores autênticos.

Como Afonso da Maia, o tio Jójó encerra um ciclo. O Jorge é o seu velho mestre de armas que conhece os cantos á casa, as tocas, os abrigos, a direcção do vento, o canto dos pássaros, que maneja a enxada, o martelo, a acha e o pichel.

Protejam o tio Jójó, aguentem-me esse maravilhoso Jorge, não matem a Cotovia…
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*Publicado originalmente na edição de Novembro de 1982 de O Sesimbrense, na rubrica «Contos da Noite Velha».

2 comentários:

  1. Não sei se o Tio Jojó ainda é vivo, a Cotovia daqueles tempos já só existe nas memórias deixadas por quem era dono duma Memória fora de série.
    O tempo se encarregou de a matar, mau grado o apelo final (em forma de trocadilho) ao jeito do Pulitzer de Harper Lee...

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Fenomenal!!!

    Até eu dei por mim, no final, a gritar pela Cotovia, pelo Jorge e pelo Tio Jójó!

    Boa noite, Ó Mestre!

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