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quarta-feira, 24 de março de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 2


A Cotovia* (1.ª parte)

António Cagica Rapaz

Durante muitos anos a Cotovia nada mais representava na teia das minhas recordações do que uma paragem no itinerário pachorrento do carro de Cacilhas.

Depois da subida soluçante, ruidosa e fumarenta, até Santana, quase sempre atrás de uma camioneta do peixe (daquelas que vão deixando na estrada um rasto salgado), contornando o posto da Polícia onde o Mau-Mau controlava o horário com severidade, rasgava-se um horizonte novo na frescura da manhã. Era a Cotovia. Sesimbra ficava lá em baixo, na cova funda, meia adormecida, com as «beatas» vestidas de preto a saírem da missa das sete e a juntarem-se em grupinhos no jardim, em frente da capela, os miúdos de saco branco com as carcaças quentes para o pai que está na loja e espera o café da manhã. As mulheres do campo começam a chegar com os burros carregados para a praça. Nas tabernas cheira a bagaço e a abafadinho. Os velhos pescadores sentam-se no muro olhando o mar azul, procurando a rabeça do sol que já se eleva por cima do Caneiro. Uma barca cruza a baía, o motor ronrona e o fumo perde-se no céu sem nuvens. O Mau-Mau volta p’rá barraca e o Manel Estêvão mete a quarta, Cotovia abaixo…

A Cotovia era, para mim, apenas uma paragem do carro da carreira, uma aldeia escondida onde, à hora a que eu passava devorando a paisagem com os olhos escancarados de miúdo curioso, o tio Sebastião da Sopa abalara já estrada abaixo enquanto o Jorge bebia uma tigela de café que a Joaninha lhe preparava. Mas nessa altura eu ainda não conhecia o Jorge, só conhecia o Tio Sebastião porque o via muitas vezes na «Sopa», de fato de ganga azul e boné. Para a criança que eu era, o tio Sebastião era um homenzarrão que eu achava parecido com o meu pai, com a mesma estatura, o mesmo aspecto franco e vigoroso. Só que o tio Sebastião ainda desce ao jardim, aconselha o Jerónimo, ajuda o Fernando, caminhando pausadamente, atravessando o tempo sem pressas…

A Cotovia é campo mas um campo diferente do meu. O João Pedro, o meu sobrinho, chamava-lhe o campo da Carmelinda (filha do Jorge). Mas o meu campo era as Caixas, ficava no lado oposto. A Cotovia era menos campo, estava mais perto de Sesimbra e, como ficava na estrada de Cacilhas, cheirava a Lisboa. O meu campo era diferente, a estrada era de terra batida, de macadame, só havia uma carreira de manhã e outra à noite. E a camioneta reservada à carreira de Alfarim era a mais ranhosa do Covas.

A minha paixão pelo campo, pelas Caixas, prolongou-se pelos primeiros anos da minha infância em que virei as costas à praia e só gostava dos porcos, das galinhas, das mulas, da debulha, do pão no forno, dos pinhões, do moinho, da vindima, da água-pé, daquela vida dura mas saudável, com manhãs luminosas, a alvorada anunciada pelo galo garboso do tio Meano, com crepúsculos suaves, com o dia a perder-se na curva da estrada onde desaparecia o carro da carreira que regressava a Sesimbra. Cansado das lides diárias, em que participava com ardor, eu adormecia beatificamente enquanto o meu pai ficava à porta em conversa sem fim com o tio Júlio e o tio Justino que o ouviam com prazer e admiração. Ao longe, confundindo-se com as estrelas, viam-se as luzes trémulas da costa do Estoril, de Lisboa, dessa Lisboa que nos obrigava a passar na Cotovia. E acabei por conhecer a Cotovia, na minha adolescência e já homem capaz de saborear o bagaço do Jorge. Assim aprendi a gostar de outro campo mas as minhas raízes ficaram nas Caixas, na água límpida da fonte dos Torrões, na sopa de tomate e batata com pele, no pão amassado pela tia Clarisse, nas vindimas da Roça, na farda branca do meu pai emergindo da poeira levantada pelo carro da carreira, na corrida atrás do trilho na eira, na melancolia do regresso a Sesimbra após as primeiras chuvas de Outubro e o apelo da escola.

E anos volvidos voltei a encontrar o tio Sebastião que já não me pareceu tão grande. Quando o conheci, em pequenino, não imaginava que ele fosse da Cotovia. Para mim ele era o tio Sebastião da «Sopa», velha mansão que as chapas de zinco protegiam da maresia. E o tio Sebastião simbolizava a sopa, o inverno, o vendaval, a rua dos Pescadores. E afinal ele é da Cotovia, quis Deus que fosse irmão do Jorge. E o Jorge, no meu espírito, é a Cotovia, a Cotovia é o Jorge. Lá iremos…

(continua)
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*Publicado originalmente na edição de 24 de Outubro de 1982 de O Sesimbrense, na rubrica «Contos da Noite Velha».

2 comentários:

  1. Este é um legado único para deixar a filhos e netos.
    Podem sentir-se os sons, os cheiros e o mais que embala a imaginação dum rapazinho nessa rapidíssima passagem pela infãncia.
    Um gosto enorme para quem o lê.

    BOA NOITE, Ó MESTRE!

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  2. Impossível não entrar no ambiente da época. Somos levados ao colo...

    Boa noite, Ó Mestre!

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