__________________________________________________________________

segunda-feira, 23 de maio de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 59





Pendular

António Cagica Rapaz

A chuva cai, fria, na noite invernosa. Ao longe, o mar, soturno e cavo, vendaval dos antigos, ondas enroladas na nossa memória dia a dia mais fugidia e incerta, desde que ancorámos a aiola no Lar dos idosos onde esperamos o fim...

As noites são intermináveis, dorme-se pouco nestas idades. De casa trouxe um relógio de pêndulo, movimento regular, monótono e triste que embala e acentua a solidão, a impressão de eternidade antecipada, de suspensão do tempo que não passa, que não volta, que nos angustia e confunde, atarantados no vazio da vida. Tempo que nos escapou irremediavelmente, tudo é passado, tudo se foi no rasto ondulante que a barca foi deixando, aiola a que se cortou o cabo e foi à via na imensidão do mar, na pretidão lancinante da noite, envolta em franjas de bruma. Aiola destroçada que deu à costa à porta do Lar, última corrida, última viagem no carrocel da vida, longe do tempo em que afrontávamos o mar e o vento, de olhar firme e de mão segura, chegávamos a casa com o balde cheio de peixe, ao cair da noite, o tacho ao lume e os miúdos na rua, a brincar. Era o tempo do banco à porta, da luz filtrada das tabernas a recortar-se no empedrado da rua, da guitarra suplicante, da voz de queixume, do mar prateado de luar. Éramos felizes e não sabíamos. Éramos novos, vigorosos, lutadores de mangas arregaçadas, sensíveis às coisas simples e boas, uma caldeirada a bordo, um passeio à Arrábida, sardinhada à porta, a magia da noite de Natal, rancho melhorado e a família à volta, o fervor da procissão do Senhor das Chagas, a inocente fascinação dos carrinhos, do carrocel oito, do poço da morte, tudo ali a dois passos do que é hoje o Lar. O pêndulo, que era da patroa, coitada, já lá está, continua infatigável, noite e dia, vida e morte neste poço onde só estamos à espera dela, questão de tempo. Os filhos? Os filhos têm a sua vida e essa não passa por aqui.

A emoção secou em nós, fomos morrendo aos poucos ao longo da vida, em cada desencanto, em cada desalento, em cada fracasso, em cada frustração, em cada incompreensão, em cada desgosto, em cada mágoa.

Somos como uma casa grande cujas janelas se vão fechando, umas atrás das outras, até tudo ficar na penumbra, fechado como as nossas almas, como os nossos olhos que perderam a vontade de ver, como os nossos ouvidos insensíveis aos apelos.

Em cima da mesinha estão os comprimidos, amarras que nos prendem ao cais derrisório da vida. Na quietude sombria da noite, por vezes, há no ar uma vertigem de tentação. Os frascos parecem acompanhar o movimento cadenciado do pêndulo, barca dolente baloiçando de mansinho na doca. E o céu parece mais perto. Mas não, acaba-se por pensar noutra coisa, muda-se de ideias, pinta-se a noite de azul, busca-se o sono.

Logo à tarde, no jardim, lá estaremos para reconstruir desajeitadamente os quartéis da nossa infância, desenterrar velhas rábulas, saborear o prazer da prescrição de malandrices distantes, rir com os poucos dentes que nos restam, em devaneios de uma sensibilidade mutilada.

De vez em quando toca a finados e, nessas alturas, uns fazem-se ainda mais surdos, outros desentendidos. Alguns filosofam com ansiedade mal disfarçada e há sempre quem procure gracejar numa tentativa patética de exorcizar o medo.

Mas, apesar de tudo, na frescura da manhã, acabamos por abrir a janela e procuramos no céu uma réstia de esperança. Por isto, por aquilo, sei lá, será que alguém sabe? Talvez, apenas, porque o mar chama por nós...

1996

sexta-feira, 20 de maio de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 10


Rádio Renascença

António Cagica Rapaz

A Renascença começara por ser o Enquanto for bom dia, com a Maria Margarida e o Pedro Castelo, e o Despertar às sete e meia, com que o Fernando de Almeida me acordava nos tempos de Mafra.

Um dia, em Novembro de 1971, trouxe de Paris, um disco do Serge Reggiani, Le petit garçon. Enchi-me de coragem, fui à Renascença, durante a emissão, e pedi para falar com a Maria Margarida. Ela veio cá fora, expliquei-lhe, deixei-lhe o disco e eles passaram-no diariamente durante um mês…

A Renascença era também o meu amigo Vítor Marques, dono da boîte “O Forno”, em Sesimbra, e locutor com prestígio.

Era ainda o meu compadre Alves dos Santos que eu começara a ouvir aos 8 anos, sem sonhar que um dia haveríamos de ser amigos e que chegaria a encontrar-me a seu lado, ao microfone.

Por tudo isto, e muito mais, por uma grande paixão que sempre tive pela Rádio, o convite para fazer crónicas na Renascença foi uma felicidade. A aposta era ousada. Eu gravava as crónicas, em casa, três ou quatro de cada vez, e enviava a cassete. Depois, em cada domingo, iam para o ar como se fosse em directo de Paris.

A grande dificuldade (e o aliciante desafio) era arranjar temas que, em duas ou três semanas, não perdessem actualidade, o que é mais complicado do que reagir a um acontecimento. Mas isso funcionou como um estímulo muito forte.

Pegava num disco do Neil Diamond (Jazz Time) e gravava o indicativo. Depois lia o texto e, no final, entrava com a última faixa da música que é arrebatadora. O efeito era muito bom, enchia-me de prazer e de um bocadinho de orgulho.

Das muitas que fiz, uma houve em que me excedi. Tive razão em criticar atitudes e palavras de um treinador (António Medeiros) mas excedi-me nos epítetos com que o bombardeei, no final. Fui demasiado duro, na forma, reconheço-o e penitencio-me.

Comecei em 1981 e durante três anos comentei, opinei e divaguei Mais em jeito do que em força.

Tenho muito orgulho em ter feito parte daquela magnífica equipa composta pelo excelente profissional e homem digno que é Ribeiro Cristóvão, pelo meu grande amigo e mestre Alves dos Santos, sem esquecer o Vítor Sérgio, o Alfredo Farinha, o Cruz dos Santos e o Aurélio Márcio. Ah, e também o Artur Agostinho.

Foi bom, foi bonito, gostei muito…

quarta-feira, 18 de maio de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 59


As linhas da mão*

António Cagica Rapaz

Março de 1971. Nessa altura estas questões de natureza metafísica ainda não haviam atravessado o meu espírito. Apenas conservara recordações difusas de relatos fantasmagóricos de manifestações de almas do outro mundo e de pessoas possuídas pelo diabo, como uma velhota (analfabeta, convém referir) que respondia, em português, a perguntas que o padre João lhe fazia, em francês e inglês. E sem a menor dúvida percebia as perguntas. Quem souber que explique este mistério, eu não sei…
Tendo ouvido referências elogiosas ao professor Hórus e levado pela curiosidade, resolvi consultá-lo. Foi de manhã, na avenida João XXI, estava a cumprir o serviço militar no quartel da serra da Carregueira e a jogar no Belenenses. Estes pormenores são importantes para um correcto enquadramento e compreensão dos factos que vou narrar.
Como pretexto para a consulta, levava duas perguntas. Por um lado, de forma discreta, sem abrir o jogo, procurar descobrir se havia risco de ser mobilizado para o Ultramar. Por outro, sem revelar pormenores saber se a minha mãe iria ou não sair da casa onde morávamos.
Relativamente ao primeiro assunto, não revelei que estava na tropa, e o professor Hórus apenas sabia que eu estava no Belenenses, já que se interessava por futebol. À minha pergunta respondeu simplesmente que eu, de facto, sairia do País. Ou nos quinze dias que se seguiam ou, se não, entre Setembro e Novembro. A primeira hipótese era altamente improvável pois a tão curta distância decerto já saberia. Na realidade, nem pela tropa nem pelo futebol havia qualquer viagem em perspectiva. Ficava então, por exclusão de partes, a saída entre Setembro e Novembro, o que àquela distância parecia perfeitamente possível. Tentei saber se seria para perto ou para longe, mas só me disse que sairia do País, sem mais precisões. Por isso, não liguei importância à previsão já que, pelo futebol, era possível, em qualquer altura, ir ao estrangeiro. Só mais tarde, depois das coisas acontecerem, me lembrei do que me dissera. E, ao retomar o fio dos acontecimentos, apercebi-me de que o encadeamento foi espantoso. E tudo me foi dito de forma tranquila, sem artifícios nem encenações, com clareza e simplicidade. O professor limitou-se a perguntar o dia e a hora do meu nascimento, para depois se concentrar nas linhas da mão, onde, segundo ele, tudo está escrito, basta saber ler.
Após a consulta, fui à minha vida e não voltei a pensar no assunto, até Novembro.
Assim, o tempo foi passando e os dados foram sofrendo alterações.  Em Julho, uma atitude inesperada do Belenenses obrigou-me a fazer um processo àquele clube, pondo termo à minha actividade de futebolista. Ficava, desta forma, sem viabilidade a hipótese de sair do País via futebol. Restava o risco de ser mobilizado, o que podia suceder até fins de Setembro. Ora, no dia um de Outubro esse risco foi eliminado, pois deixei de ser mobilizável. Porém, não havia a menor possibilidade de eu poder sair do País, uma vez que não tinha qualquer motivação para tal, nenhuma razão objectiva, não tinha férias e o próprio passaporte estava caducado. Em resumo, nada, mas absolutamente nada, deixava antever a minha saída do País. De repente, tudo mudou. Ao meu quartel, na Serra da Carregueira, chegou uma ordem de transferência para a Defesa Nacional, na Cova da Moura, que viria a ser o berço da Junta de Salvação Nacional. Mal lá cheguei, aproveitei uma falha do sistema para obter um inesperado mês de férias. A meio de Outubro, sem que eu procurasse, surgiu a oportunidade de ir a Paris. Consegui em 24 horas a renovação do passaporte, habitualmente muito demorada. E acabei por sair do País, em fins de Outubro, ou seja, entre Setembro e Novembro, como Hórus previra. Mais tarde dei por mim a analisar a sucessão das ocorrências: tudo contra, a certa altura, para, pouco a pouco, irem caindo as barreiras e se abrirem portas até ao desfecho que ele previra. Espantoso.
O episódio da nossa casa foi ainda mais impressionante. Uns meses antes, o dono da casa onde morávamos, anunciou-me, sem contemplações, que precisava dela para passar férias. E que, por essa nobre e irrecusável razão, a minha mãe teria de abandonar a casa onde morávamos havia vinte anos. Tentei sugerir que utilizasse a enorme (e quase vazia) vivenda da sua mãe, ali mesmo ao lado da nossa. Procurei explicar que, se ele precisava da casa para férias, nós precisávamos dela o ano inteiro. De nada serviu, não senhor, queria a nossa casa. Frisou que era proprietário havia mais de cinco anos, que tinha advogado e que me poria em tribunal. E foi o que fez, accionando a ordem de despejo. Houve julgamento no Seixal e o senhor apresentou três testemunhas para o ajudarem na louvável cruzada de nos pôr na rua. Uma delas era um sesimbrense insigne, já falecido, que morava no castelo. Outra estava ligada a uma das empresas rodoviárias da nossa terra. Da terceira não me recordo. Nós levámos a minha tia Lucinda que chegou para todos eles menos para o juiz que acolheu benevolamente os justos e piedosos argumentos do senhor proprietário. E, com toda a naturalidade, nós perdemos. Para ganhar tempo, apenas, interpusemos recurso, mas sem a menor esperança. E foi neste contexto que, em Março de 71, consultei o professor Hórus.
Naturalmente, nada revelei destes preliminares, apenas perguntei se a minha mãe iria sair da casa onde morava. Hórus pediu-me a data de nascimento da minha mãe e, de imediato, proferiu uma declaração que me deixou estarrecido. Disse-me, mais ou menos o seguinte: “Se a sua mãe tivesse de sair de casa, teria saído no dia 2 de Fevereiro. Se não saiu, só o fará daqui a cinco anos.” Estávamos, recordo, a meio de Março, e a minha mãe só não saíra porque havíamos recorrido da sentença. Na realidade (e isto é impressionante), se não tivéssemos recorrido, a minha mãe teria mesmo saído a 2 de Fevereiro. Porque a sentença do tribunal fora proferida a 2 de Novembro e tínhamos três meses para sair. Mais ainda. Cinco anos depois, em Março de 76, a minha mãe saiu de casa, como Hórus previra. Foi para o hospital e lá veio a falecer.
Durante esses cinco anos a minha mãe viveu na sua casa porque, contrariamente à nossa expectativa, ganhámos o recurso. Estávamos tão certos de voltar a perder que já tínhamos outra casa apalavrada, na mesma rua Monteiro. Quando o consultei, para mim era uma certeza ter de sair de casa. Por isso, não acreditei no que me dizia, não via como evitar o despejo. No entanto, Hórus não se enganou. Estas terão sido as revelações mais marcantes que me fez. Outras vieram a confirmar-se e só não me impressionaram tanto porque me pareceram naturais, na lógica das coisas, sem obstáculos de peso pelo caminho.
O professor era um homem simpático, de palavra solta, desassombrado. Criou-se entre nós um clima espontâneo de cordial confiança, falámos de muita coisa, imaginámos um projecto original ligado ao futebol e acabei por lhe fazer uma entrevista insólita para o “Record”, tendo ele recusado ler o que escrevi antes de ser publicado. Disse-me ter total confiança em mim, garantida pelo meu signo e pelo meu ascendente. Foi mais longe e convidou-me para o secundar, por forma a substituí-lo a prazo, pois já estava em condições de se reformar quando lhe apetecesse. Para mim foi uma grande surpresa, não me sentia sequer atraído, menos ainda preparado para tal missão. Tranquilizou-me dizendo que conseguiria, que bastaria aprender um pouco de astronomia, usar de certo bom senso e psicologia, já que tudo (ou quase) está escrito na mão. E isso ele me ensinaria. Recusei, quase sem pensar, por instinto. Nessa altura, estas questões esotéricas eram-me totalmente estranhas, pelo que não aceitei o convite. Por curiosidade, perguntei-lhe como pôde ele casar, já que deveria saber que não resultaria. De facto, Hórus era divorciado e vivia com outra mulher. Sorriu e disse-me que, de facto, sabia. Mas que não se pode fugir ao destino. No fundo, eu penso que, embora avisado, mesmo sabendo, fica sempre uma parcela de dúvida. Por isso, talvez, terá casado…
Não voltei a vê-lo desde então. Vinte anos mais tarde, em situação particularmente dolorosa, contactei-o por telefone, a mais de mil quilómetros de distância. E o professor Hórus, sem me ver, sem ver a minha mão, consegui fazer uma previsão que, uma vez mais, se concretizou em absoluto.
Volvidos estes anos, não sei se teria condições para o substituir. Sinceramente, penso que não. Porque ele tinha, com certeza, um dom superior. Acredito que muita coisa possa estar escrita na mão. Porém, na minha, com certeza que não estava escrito 2 de Fevereiro. Para chegar a tão inacreditável pormenor era preciso uma capacidade excepcional de vidência. Que eu não tenho. Se tivesse já me teria apercebido. Com toda a tranquilidade, Hórus contava-me que as pessoas iam vê-lo na esperança que ele lhes proporcionasse uma vida melhor. Mas, com humildade, o professor admitia que apenas podia dizer-lhes o que está escrito na mão, nada mais. Que não tinha o poder de lhes alterar o destino. A esta distância, pelo que tenho visto, penso ser discutível se uma pessoa, uma vez alertada e se acreditar, pode ou não alterar o seu destino. Mas, ao escolher o que julga ser outro caminho, não estará apenas a cumprir o que, na verdade, lhe estava pré-determinado? Vasto debate, meus senhores.
No fundo, se Hórus não deu a cada um o destino apetecido, pelo menos terá despertado em muitos a consciência de que nada acontece por acaso. A partir daí, cada um segue o caminho que entender. Certa, só a morte…
____________
*Publicado em O Sesimbrense de Fevereiro de 1999.

terça-feira, 17 de maio de 2011

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 49

Dá cá eu - (Doze)
António Cagica Rapaz



[da série O que eles poderiam ter dito]

segunda-feira, 16 de maio de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 58



O Titanic e o Numância

António Cagica Rapaz

Todos nós temos, cada um à sua maneira, uma atitude ou, pelo menos, um olhar crítico sobre quanto nos rodeia, e é difícil negar que certas apreciações não envolvam preconceitos de classe ou de estatuto. É de bom tom ir-se ao teatro dito sério, não à revista do Parque Mayer. É bem ir ao Centro Cultural de Belém, apenas curioso ir dançar aos Alunos de Apolo. E a nota de intelectualidade vem com o anúncio de que se vai à ópera, a exposições e se anda a ler “O Erro de Descartes”, obra da autoria do brilhante cientista António Damásio que, paradoxalmente, é menos conhecido que Manuel Damásio, antigo presidente do Benfica.

Fica bem passear, ao sábado, com o “Expresso” na mão, embora o prazer da sua leitura possa ser, para muito boa gente, inferior ao do conferido pelo “Record”. E há quem leia os dois, é verdade. Cada um tem o direito de escolher as formas, os objectos da sua contemplação e as vias de navegação no interior de si mesmo.

Talvez também o mais importante não seja assistir à concertos, visitar museus ou ler muitos livros. Se calhar, o mais importante é o que fazemos (ou não) com isso, de que nos serve, o que provoca em nós, quem somos, como nos tornamos depois de lermos Tolstoi, depois de admirarmos um quadro de Modigliani ou vermos um filme de Ingmar Bergman.

É bem possível que o operário que assistiu a uma desgarrada na tasca lá do bairro encontre nela inspiração para improvisar duas quadras ou assobiar ao desafio com o canário, na penumbra da oficina. Ao passo que muitos dos nossos intelectuais levam uma vida inteira a ver, a ler, a assistir, a contemplar, sempre e só espectadores, passivos, sem jamais escreverem o menor verso, sem desenharem sequer na areia, sem moldarem uma bola de barro nem pintarem uma parede com cal.

Há tempo vi um filme de Manuel de Oliveira e não gostei, achei insípido, insuportável. Em contrapartida, achei deslumbrante o Titanic que levou a bordo uma bela história de amor, um amor forte e saudável, rijo como o vento, macio como o mar raso, imparável, inadiável, eterno, braços estendidos para o infinito, para além dos preconceitos, para além das convenções, para além da morte.

O Titanic veio confirmar que continuamos a precisar de romanesco, de amor, de sonho, de fantasia, a mesma fantasia que se apossava de nós ao contemplarmos os destroços do Numância. Durante anos, ele foi o mistério que deu à costa, espécie de monstro marinho que veio morrer na rebentação.

Nas suas cavernas, mais do que polvos e safios, moraram segredos de guerra, silêncios tenebrosos, o desconhecido e o fascínio. Com ele, o mar e o tempo levaram os charutos, os escaleres, os passadiços e a poesia da praia do tio Abel...

Cada um tem imagens e filmes na cabeça, desde as aventuras do burrinho Bim, que o padre João projectava no salão paroquial, até ao Titanic. A nossa vida é um filme de que somos actores, de que nos julgamos realizadores e do qual, muitas vezes, somos apenas espectadores incapazes de interferir, impotentes para reagir. Até ficarmos sozinhos na sala escura quando toda a gente já saiu, olhando para o relógio. Lá fora, na rua, já começa outro filme, outras vidas. Ou talvez seja apenas o mesmo filme que continua, em trinta e uma partes...

1998

domingo, 15 de maio de 2011

TALVEZ POESIA..., 9


Não peço

António Cagica Rapaz

Não peço
Muito mais à vida,
Basta-me
Este sol que me aquece,
A música das gaivotas
E este mar
Que me embriaga...

sexta-feira, 13 de maio de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 9



Gazeta dos Desportos

António Cagica Rapaz

Foi no início da década de 80 e o jornal era novo, era uma boa aposta. Eu estava em França e comecei a escrever por iniciativa de Alves dos Santos a quem dediquei a primeira das minhas crónicas que tinham o título genérico de À meia volta.

Contrariamente ao que sucedia no Record, não conhecia a equipa da Gazeta e só fui uma vez à redacção, pouco antes de cessar a colaboração.

Sendo os meus temas por vezes arrevesados, poderia ter sucedido que me pusessem algumas dificuldades, o que eu teria compreendido. Nunca tal aconteceu, nem mesmo quando abordei aspectos delicados ocorridos ao longo dos anos em que joguei.

Apreciei a abertura e a disponibilidade, e penso ter vivido na Gazeta a fase mais inteerssante e rica dos meus exercícios de aprendiz de cronista ligado ao futebol.

Foram três anos, muitas dezenas de crónicas e a  convicção de ter feito, pontualmente, algumas boas peças, focando assuntos importantes, se é que em futebol alguma coisa é relevante.

A úncia sombra surgiu quando Wilson Brasil decidiu contemplar-me comum dos seus patéticos troféus Gandula. Não só recusei como escrevi um artigo a explicar porquê. Em resumo, dizia que qualquer distinção só tem valor quando é rara, o que estava longe de ser o caso dos troféus Gandula. Ironizei, dizendo que, em Protugal, só um jogador da 3.ª divisão regional em Trás-os-Montes ainda não tinha sido gandulado.

O director, Joaquim Queirós, telefonou-me, muito amavelmente, e pediu-me para não publicar o artigo, o que aceitei, sem hesitar. Por acaso, no dia da festa, estava em Lisboa, por motivos profissionais, mas não assisti. No dia seguinte, Wilson Brasil escreveu que eu não pudera estar presente por me encontrar em França, mas que lhe tinha escrito uma carta a agardecer, muito emocionado, o troféu com que me distinguira.

Nâo achei necessário rectificar a capciosa manipulação, e apenas reforcei a idiea que me levara a recusar o prémio.

Embora nunca me tenha sentido como fazendo parte da equipa, dada a circunstância de, na altura, não estar a viver em Portugal, ficaram-me muito boas recordações da Gazeta dos Desportos...

quarta-feira, 11 de maio de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 58



Por Hórus*
António Cagica Rapaz
Recentemente, o nosso companheiro que ocupa “O canto da floresta”, Eng. José Rodrigues, entregou-se a reflexão sobre a vida, a morte, a eventualidade daquela depois desta, toda uma problemática velha como o tempo mas que conserva total actualidade e apaixonante interesse pois o mistério permanece inteiro. Porque a revelação só surge quando chega a nossa hora.
De facto, desde sempre que o homem se interroga sobre o sentido da vida, de onde vimos, para onde vamos, vidas anteriores e posteriores. Há mil teorias, mil tentativas de resposta, mas nenhuma é suficientemente esclarecedora, nenhuma dá certezas nem garantias. Aliás, na minha opinião de profano ignorante, é normal que assim seja, o mistério e a dúvida são condições indispensáveis para a caminhada que somos levados a realizar neste mundo e que deve ser autêntica e sincera. Lá voltaremos…
A verdade é que, apesar das espantosas conquistas da ciência, continua por demonstrar se há ou não vida para além da morte. Postas perante esta angustiante questão, há pessoas que acreditam na existência de uma vida eterna, na sobrevivência do espírito, na possibilidade de contactos com esses mesmos espíritos e na reencarnação. Outras, quando ouvem certas narrativas, limitam-se a dizer que não acreditam, não tentando arranjar explicações, não procurando desmistificar nem destruir as teorias e crenças alheias. Não acreditam, ponto final.
Há, ainda, uma categoria de pessoas que considera ridículas e próprias de espíritos inferiores, ingénuos e pueris, as convicções ligadas à existência de vida depois da morte. Sentem-se mesmo insultadas na sua inteligência, no seu fulgor intelectual. Não se contentam em dizer que não acreditam, antes procuram encontrar teorias racionais e científicas para o que reduzem a alucinações e parvoíces de gente crédula e influenciável. E lá nos informam, do alto das suas cátedras, que só uma pequeníssima parcela do nosso cérebro é aproveitada, que os pretensos fenómenos paranormais são apenas consequência de reacções químicas, enfim toda uma panóplia de argumentos que disso não passam. A grande verdade é que, se os ingénuos não conseguiram ainda provar que há vida depois da morte, não é menos certo que os espíritos superiores também não demonstram que não há.
E desta forma continua empatado, desde há séculos, este encontro de convicções. Se calhar é preferível que as coisas fiquem assim, como estão, cada um na sua, todos livres de seguir o caminho que quiserem, em total liberdade, levados pela fé ou pela sua ausência, conforme os casos.
Pessoalmente, só muito tarde me interessei por estes assuntos e pouco sei deles, embora tenha tido certas experiências muito interessantes que me levam a crer que o balde de cal no caixão não é o fim, mas o princípio. Apesar desta convicção, entendo que a dúvida deve subsistir, por ser a regra do jogo. Se não, vejamos. Se Deus quisesse dar-nos provas indiscutíveis da Sua existência, não teria a menor dificuldade em aparecer aqui e ali. Mostrava-se, tirava-nos todas as dúvidas com meia dúzia de milagres ou proezas só ao Seu alcance e, depois, ia à Sua vida eterna. Porém, se o fizesse, tirava-nos o livre arbítrio, cortava-nos a espontaneidade, condicionava irremediavelmente o nosso comportamento que passaria a ser guiado pela certeza da existência de Deus e, por inerência, do Paraíso. O mal acabaria e o bem alastraria, mas um bem postiço, interesseiro, simples meio de obter o Céu como recompensa garantida. Como saber então quem seriam os genuinamente bons e os oportunistas? Dir-me-eis, Deus sabe tudo. É verdade, mas se as coisas são como são, Ele lá terá as suas razões. Aliás, já que vamos por aqui, há uma coisa que me faz certa confusão e que, à primeira vista, parece ilógica. Mas se Deus quis assim, alguma boa razão haverá. Eu conto. Todos concordarão que o ser humano é o que de mais importante há no Mundo. Por isso, de todos os actos que nós possamos levar a cabo, nenhum será mais sério, mais grave e mais valioso do que fazer um filho. Ora, estranhamente, fazer um filho não custa um centavo e, mais do que isso, é um acto que proporciona prazer. Muitas vezes, diria mesmo quase sempre, o filho é feito por acaso, sem intenção, sem querer, sem ponderação prévia. Do meu ponto de vista, há uma desproporção gigantesca entre a importância e as consequências do acto face à facilidade, à banalização e, sobretudo, à ideia de prazer carnal que o caracteriza. Como se Deus receasse que, se não fosse fácil e agradável, o homem não procriasse. Na realidade, fazer um filho deveria ser pelo menos tão doloroso como arrancar um dente. Evitar-se-ia muita miséria, muito drama. Mas haveria muito menos crianças. Não acuso nem elogio Deus, apenas considero que há aqui uma manifesta contradição e, provavelmente, suprema habilidade divina. Mas, repito, se Deus assim quis, razões terá…
Sesimbra, temente a Deus e respeitando o mar, foi buscar à cova funda do tempo mil narrativas de casas assombradas, passos arrastados, ruídos estranhos, vultos, vozes roucas, histórias contadas em tempos tenebrosos de vendaval, com o vento medonho a assobiar na noite escura de breu. Para os meus ouvidos de criança era assustador, sobretudo porque não podia duvidar da sinceridade das pessoas.
Tenho perfeita consciência de que se trata de uma questão sensível, controversa, sobre a qual os dados, por mais concretos que pareçam, deixam sempre uma margem de dúvida. Não é meu propósito convencer nem defender teses contra ventos de suspeita metódica nem marés de intelectualismos sobranceiros, apenas me agrada abordar um assunto apaixonante. Talvez por ser um espírito simples, partilho o terror de uma mulher que viveu por duas vezes numa casa que fora uma barbearia onde se enforcara o dono, ali em frente da “Virgilinda”. Por outras tantas vezes teve de fugir, apavorada, tendo ouvido, noites a fio, uma navalha que mão invisível amolava repetida e arrepiantemente. Mais tarde, eram luzes que acendiam e apagavam sozinhas, panelas e tachos a bater na noite, portas que se abriam e fechavam, um espírito de alguém conhecido que entrava na casa onde morara, mil episódios que me encheram de medo. Não sabia eu, então, como julgo saber hoje, que estes ruídos, estas manifestações são apenas tentativas de quem não sabe ou não pode comunicar connosco e que deseja transmitir-nos alguma coisa, dar conta de uma promessa que ficou por pagar, de um documento que conviria revelar, sei lá. Raras são as pessoas que possuem o dom de ver e ouvir os espíritos, como raros são os espíritos capazes de se nos revelarem. Desta dificuldade resultam estas tentativas de comunicação que assustam quem para elas não está preparado. Eu confesso que continuo a não estar, já que as experiências em que participei foram simples diálogos à volta de um copo que força misteriosa leva a formar palavras. É verdade que foram muito interessantes, embora deixem cépticas muitas pessoas. Não faz mal, cada um é livre de pensar o que quiser. Na verdade, eu não sou imparcial porque me parece absurdo, porque me recuso a aceitar a ideia de que tudo acaba, de que nada mais há para além do cemitério. Para mim não faz sentido que o espírito não sobreviva, pelo que serei certamente mais aberto, mais receptivo a ideias que outros possam considerar romanceadas ou delirantes. Mas admito as reticências à volta destas questões que são controversas, impalpáveis e que têm dado lugar a muita manipulação e charlatanice.
É provável que haja em torno delas alguma parcela de fantasia, aqui e ali, ditada pela necessidade que as pessoas têm de encontrar um sentido para a vida. E também para a morte que só os orientais aceitam com uma filosofia que é muito deles…
Não nego a capacidade da ciência nem desprezo a fantasia. E é nessa fronteira ténue entre o poder da ciência e as asas da ficção que se situa uma aventura palpitante, em banda desenhada, que gira em torno de uma tentativa para explorar maleficamente as potencialidades do cérebro humano. Trata-se de “A marca amarela”, vinha no Cavaleiro Andante e tinha como figura central um aventureiro, Olrik, que um cientista alucinado (o professor Septimus) transformou em cobaia humana (Guinea Pig). Dominou-lhe totalmente a vontade, dotou-o de força colossal, tornou-o praticamente invulnerável e colocou-o ao serviço da sua vingança destruidora, levando-o a raptar, matar, destruir. Olrik (ou Guinea Pig) escapava a todas as tentativas de captura organizadas pela Scotland Yard com o auxílio do fleumático professor Mortimer e do corajoso capitão Edgard. Até que o inevitável frente a frente aconteceu, tendo o capitão despejado o seu revólver sem sequer beliscar Olrik que sorria, sardónico e diabólico, enquanto avançava para liquidar o nosso herói, de súbito, num rasgo desesperado, o capitão Edgard gritou-lhe com quanta energia lhe restava: “Por Hórus, detém-te!”. Guinea Pig caiu como fulminado. Na parede a estátua de Hórus pareceu animar-se…
Procurei o álbum para verificar nomes e pormenores, mas não o encontrei. Se a memória me falhou, paciência. Para quem não estiver recordado, Hórus é um deus do antigo Egipto, deus do sol. Da ficção voltamos à realidade, observando que Hórus foi o nome escolhido pelo astrólogo mais famoso de Portugal para exercer a sua arte. Morreu há pouco tempo, chamava-se Lourenço e tive o privilégio de o conhecer no início da década de 70. Tivemos um relacionamento muito curioso, fez-me revelações e previsões que acabaram por se revelar exactas, apesar de, à partida, me parecerem altamente improváveis. Recordo uma conversa de três horas da qual resultaram uma entrevista insólita e ousada que publiquei no “Record”,misturando astros de céu com os do futebol, e um convite não menos surpreendente que não fui capaz de aceitar. Era total novidade para mim, não estava preparado, não era o momento certo. E não deveria estar escrito na palma da mão que o professor Hórus me leu com o seu sorriso tranquilo.
As linhas da mão inspiraram o autor do velho fado da Amália que cantava “Reza-te a sina na linha traçada na palma da mão”.
E vem de longe a habilidade das ciganas que nos pedem a mão para leitura, a troco de dinheiro. À volta das linhas da vida e da morte há certamente lacunas, imprecisões e mistificação. Mas acredito que haja verdade também. No fundo, esta conflitualidade é filha dos nossos medos e da nossa incapacidade de aceitar a morte como uma das coisas da vida.
O ideal seria que todos pudéssemos partilhar esta visão apaziguadora de uma vida depois da morte. Com ela, o Mundo seria melhor, sem maldade, sem ganância, sem tanto apego a valores materiais. É provável que volte a abordar este assunto, com elementos mais concretos, com factos que sustentem a minha convicção. Não para vos convencer, mas apenas para vos proporcionar um pedaço de leitura que espero agradável. O resto fica à apreciação de cada um, em total liberdade, com direito a sorrir, a aprovar ou a rejeitar. Não perca o próximo episódio, voltarei com coisas interessantes, juro.
Por Hórus…
____________
*Publicado em O Sesimbrense de Janeiro de 1999.

terça-feira, 10 de maio de 2011

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 48


Supersticioso, eu? - (Treze)
António Cagica Rapaz



[da série O que eles poderiam ter dito]

segunda-feira, 9 de maio de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 57



Pilaglotas

António Cagica Rapaz

- Hoje, amanhê e despois d’amanhê!

Assim transmitia o Pila a um turista alemão alguns rudimentos da nossa língua, salpicados de pronúncia muito nossa.

Encostado ao muro do Espadarte, com a irreverência própria da idade e um humor desassombrado, o Manel António desatou a rir, naturalmente, tão irresistível lhe soou a tirada do Pila. Não envolvia a sua atitude qualquer juízo de valor, cada um dá o que tem, muito faziam o Pila e os outros pilaglotas da nossa terra, às voltas com os estrangeiros que nos visitavam em busca de sol, de mar e outras especialidades da terra.

Uma bela tarde, estávamos nós a saborear umas cadelinhas deliciosas no café do Marcos, quando entra pela porta dentro um casal alemão acompanhado por outro intérprete diplomado, de seu nome Brazinha. Em francês e inglês, ainda eles arranhavam alguma coisa, agora em alemão, nada, a não ser . E há que fazer pela vida, e há que puxar pela imaginação para calafetar um envolvimento, justificar uns petiscos, tentar umas aproximações. O aparato era grande, a comunicação é que se revelava difícil. Vá lá explicar sem palavras o gosto do Pescador, o paladar das prainhas ou o sabor das cadelinhas! Como o gesto é tudo, o Brazinha não tinha mãos a medir, em mímicas e trejeitos que os alemães acompanhavam com visível incompreensão, embora aqui e ali deixassem escapar um sorriso tímido. E lá vinham as imperiais e os petiscos, com o Marcos de olhar divertido. Como não é bonito comer e beber sem criar um mínimo de ambiente, o nosso Brazinha lá ia multiplicando os gestos que ninguém percebia, nem os alemães nem nós que acompanhávamos a pantomina com descarado interesse.

Parecia um filme do tempo do cinema mudo, delírio em silêncio, surrealista, indescritível. A certa altura, dá-se o drama. O meu parente Agostinho, provavelmente preocupado com os esforços inglórios do Brazinha, abriu a boca para lhe dizer qualquer coisa. Pelas barbas do Profeta, o que ele foi fazer! O Brazinha vira-se, ofendido e furioso, e lança-lhe com autoridade e agastamento: - Cala-te, pá, não te metas na conversa!

Magistral, piramidal, inigualável sentença! O pobre do tio Agostinho meteu o rabo entre pernas e nós explodimos de riso. O Julião quase que se ia pelo fôlego e o Manel soltava gargalhadas homéricas daquelas que fazem tremer os torrões da fortaleza.

Sesimbra está cheia de historietas saborosas como esta, o célebre mano a mano entre o Ernesto Corneta e o Zé Brandão, um pé na peixaria e outro na oficina, a malandrice manhosa do Zé Ralaço, os primores de la panale, de l’armaçone, tudo isto é apenas a face ingénua de uma convivência a que todos se sentiam com direito e para a qual alguns não estavam preparados. Não se trata de julgamentos catedráticos, tal seria estúpido e intolerável. Apenas se regista, sem maldade, o toque humorístico, o insólito, o pitoresco de certas expressões e alguns comportamentos.

Era Sesimbra, era outro tempo...

sexta-feira, 6 de maio de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 8



Record

António Cagica Rapaz

Não me lembro como aconteceu, sei apenas que estávamos em 1972 e eu deixara de escrever no Diário de Lisboa. O convite surgiu e, com ele, o Artigo Indefinido.

Naquela altura, o Record estava a atravessar uma fase muito interessante, servido por uma equipa de muita qualidade. O director era Artur Agostinho e o chefe de redacção Mário Zambujal. De Londres viera, pouco tempo antes, o Hernâni Santos, a tradição era assegurada pelo eterno e tranquilo Paula Bastos, sendo a equipa de redactores composta por nomes conhecidos como Carlos Arsénio, Luís Rodrigues, Eduardo Castro, Humberto Vasconcelos, Carlos Nogueira e Fernando Correia que tinha o outro pé na Emissora Nacional. Davam os primeiros passos no jornalismo, Carneiro Jacinto e Sena Santos.

Como gostava do Bairro Alto, ia muitas vezes ao jornal e apreciei o convívio com aquele grupo. Eu era um curioso que escrevia umas coisas, enquanto estava na tropa e decorria o processo com o Belenenses. Um dia, em vésperas do Festival da Canção, lembrei-me de que podia ser curioso juntar o Toni e o José Cid, que são conterrâneos, e pôr cada um a falar da actividade do outro, misturando música e futebol, campeonato e festival. Sugeri, foi aceite, combinei tudo, escrevi a introdução, faltava só a conversa. Por impedimento militar, não pude completar a missão que foi confiada ao Sena Santos. Este jovem efectuou o serviço, publicou e assinou com todas as letras sem a menor referência ao pai da ideia e autor da introdução.

Foi uma nota discordante naquele ambiente muito cordial que me dava verdadeiro prazer partilhar, brincando aos jornalistas.

Um dia, resolvi pôr a fotografia e o nome do meu sobrinho (que tinha dois anos e meio) como sendo o autor da crónica. A princípio, a reacção foi negativa, mas acabaram por aceitar, e a brincadeira teve algum êxito. Intitulava-se a peça O tio é amigo e era a forma como o João Pedro me abordava quando suspeitava que eu lhe ia ralhar. Psicologia eficaz, devo admitir…

Mais tarde, de França, ainda mantive uma colaboração espaçada. Os tempos eram outros, o Bairro Alto começava a mudar, a magia rompera-se…

quarta-feira, 4 de maio de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 57



A Procissão*
António Cagica Rapaz
O Senhor Jesus das Chagas de braços abertos, a cabeça abandonada sobre os ombros, cobertos de belas flores, detém-se no Largo da Marinha e contempla o mar infindo, enquanto as sirenes dos barcos e os morteiros lhe martelam os ouvidos cansados de pedidos interesseiros, de promessas gananciosas.
É a procissão em todo o seu esplendor. O senhor prior, as forças vivas da terra, os lindos anjos com os seus longos caracóis e as vestes imaculadas, os homens de capa vermelha que sorriem aos amigos e impedem os anjinhos de fazer diabruras, a música a tocar, as mulheres a chorar e os carrinhos e o carrossel do arraial que empreendem nova corrida, nova viagem. Nos parapeitos das janelas, colchas maravilhosas que nunca conheceram o calor de um leito e não voltarão a ver a procissão na mesma janela, pois duas vezes a mesma colcha é vexame a que ninguém se deseja expor. Em consequências das promessas vêem-se mulheres descalças que fazem da volta à vila o seu calvário de Maio. O ritmo é lento, há lágrimas nos olhos e os meninos tristes da fragata D. Fernando tocam melancolicamente os tambores.
O Senhor das Chagas recolhe à Capela silenciosa enquanto nas suas costas soam os tiros das barracas, circulam os carrinhos, se elevam os aviões e há no ar o cheiro das farturas…
Vêm depois os Santos Populares com poucas ruas enfeitadas, cantigas de roda onde há falta de haver quem cante quadras maliciosas. Caldeirada e sardinha assada, rasgos de polvo, garrafões ao pé, tudo é alegria, o Inverno vai longe, o Inverno vem longe… Ao fim e ao cabo a festa do dito não é o que era, perdeu tradição. Ficou o gosto diluído de uma almoçarada no campo em tempo do Inverno que se adivinha, em que começa a apetecer peixe seco pela tarde fora até á noite que se deseja fria para mais um copo… O Natal é ainda a festa da família. Depois dos vestidos estreados pelas Chagas, há que pensar nos presentes de Natal.
O primeiro objectivo é a Missa do Galo com cânticos fervorosos, com práticas ardentes de alegria e amor ao próximo. Os belos casacos vão a essa missa enquanto à missa das onze do dia seguinte vão os vestidos novos comprados na véspera em Lisboa.
As famílias reúnem-se depois da Missa do Galo mas não comem tudo porque é tarde e amanhã também é dia. Trocam-se beijos e abraços, todos são amigos, interessam-se pela saúde da prima que dias antes fingiram não ver ao dobrar uma esquina, dão-se as mãos e adormece-se de barriga cheia e sorriso nos lábios que conservam o gosto do último cálice de Porto.
No dia de Natal é a grande fraternidade, mais visitas familiares e a vida que se desejaria ver deter-se por umas horas. A noite de Natal é sempre fria, tem sempre estrelas no céu ou nos nossos corações. O Natal está em nós, connosco e com aqueles que connosco já não estão. Natal do bolo-rei e dos licores, das prendas, dos vestidos e dos sorrisos vendidos ao preço duma tradição que se impõe manter aos olhos do vizinho.
Natal de cuja árvore caem bolas vazias, frutos corrompidos, brinquedos mortíferos, solidariedade balofa.
Os cânticos da missa perdem-se na noite longa e fria. Lá em cima, para lá das estrelas, moram aqueles que ainda viveram Natais de verdade… 
Junho de 1974
____________
* Publicado no Jornal de Sesimbra, na rubrica "Quando morre a madrugada - Retrato de uma Certa Sesimbra: Aos filhos da noite".

terça-feira, 3 de maio de 2011

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 47


Bem fresco, prefiro o branco - (Preto do Palmeirm)
António Cagica Rapaz



[da série O que eles poderiam ter dito]

segunda-feira, 2 de maio de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 56



O Padre João

António Cagica Rapaz

Nos anos cinquenta, a nossa vida girava à volta da praia, da escola e da igreja, com a missa dominical, o catecismo na ponta da língua e a confissão envergonhada no Natal e na Páscoa.

No salão paroquial projectavam-se filmes artesanais que nos deslumbravam porque tudo se desenrolava ali diante de nós. No salão do João Mota, o Filipe era uma espécie de homem invisível, escondido na casa das máquinas de onde saía aquele feixe de luz dirigido ao écran onde o milagre do cinema se concretizava. O salão paroquial era, com toda a propriedade, o nosso “cinema paraíso” e o projeccionista era o Padre João...

Ah, o Padre João!

O Padre João é uma figura quase mítica, bom samaritano, rei mago, bom pastor, símbolo de um tempo maravilhoso, mais do que um padre, um grande amigo e companheiro da nossa juventude.

A Igreja, naquele tempo, ensinava-nos coisas que mal compreendíamos, ficava a ideia assustadora de que os maus iriam para o inferno e que comer um bolo antes de comungar era pecado mortal. Felizmente, acima dos dogmas rígidos e tenebrosos, havia o Padre João, com a sua bondade, a sua jovialidade, a sua ternura, o seu sorriso cativante, a calorosa cumplicidade que estabelecia connosco. Poucas pessoas terão marcado tanto, adquirido uma tal imagem na memória colectiva da nossa terra.

A casa paroquial ficava no largo da igreja e por lá paravam o Pedro Vítor, o Hernâni, o Luciano, os irmãos Anacletos. Jogava-se ao futebol de tabuleiro, com pregos e uma palheta, enquanto o Zé Canoa, o Zé Quadros, o Mira e o Nobre arreliavam o Amílcar por causa do Belenenses. Era, em regra, ao fim do dia, quase à hora do jantar, quando o carro que saía de Cacilhas às seis e quarenta e cinco já vinha na Alfarrobeira.

Mais tarde, depois de jantar, o Padre João passava pelo tio Chico antes de se dirigir ao Jeremias onde o esperavam os carpinteiros navais e a impertinência do meu tio Justino. Ficou para a história o episódio da árvore de Natal e do par de cornos lá pendurado.

Célebre ficou a réplica do Padre João: “Francamente, senhor Justino, só da sua cabeça podia sair uma coisa destas!”. Era assim, homem de todas as situações, com sotaina ou em calções, tão à vontade no altar como no café, a mesma frontalidade, o mesmo desassombro, a mesma irresistível simpatia.

Porque a missa era num latim incompreensível para os profanos que todos éramos, foi criada uma versão portuguesa para a missa das crianças. Em cada manhã de domingo, o Pedro Gonçalves e eu líamos, com nervosismo e orgulho, intróitos, epístolas e evangelhos através dos quais o Senhor Jesus, em verdade, em verdade, nos dizia coisas misteriosas e maravilhosas, parábolas que recitávamos com inocente emoção, sob o olhar bondoso do Padre João. Até que, aos 16 anos, troquei o altar pela grande área, o Padre João pelo Carlos Marques, a missa pelo futebol.

O mesmo futebol nos voltaria a aproximar, uns nove anos depois, em Tomar. Com as equipas alinhadas no centro do terreno, ouvi que chamavam por mim, lá de longe, do último degrau da bancada. Era um vulto escuro que me pareceu ser um estudante de Coimbra, perspectiva pouco provável pois jogava eu, então, na CUF.

Só no final tive a resposta e a alegria de ver surgir o Padre João. Voltámos a encontrar-nos muitos anos depois, em S. Pedro de Moel e escrevemo-nos durante muito tempo, até à sua morte.

O Padre João foi, para todos nós, o senhor abade das aldeias poetizadas do Júlio Diniz, era parceiro no dominó, no não-te-irrites, no Chico da Cooperativa, no Jeremias, um irmão mais velho, um padre cativante e um homem encantador.

Dotado de forte personalidade, não se escondia atrás da sotaina e tomou posições de grande firmeza em nome da justiça, da verdade, da dignidade das pessoas, defendendo e ajudando pobres e desprotegidos.

Não tivemos o tempo suficiente para abordar com mais profundidade assuntos apaixonantes, mistérios da alma humana, questões sensíveis que teve de enfrentar com coragem e prudência, com humildade e convicção.

O nome do Padre João continua a evocar o sino melodioso, as matinas e as vésperas, a sombra protectora da igreja de cima, as endiabradas partidas de futebol depois da catequese, a segurança e a esperança, o reconforto e a fé, mas, acima de tudo, a fraternidade.

Deram o seu nome a uma rua de Sesimbra. Lá mora a nossa saudade...

1993

sexta-feira, 29 de abril de 2011

LÍBERO E DIRECTO, 7



Livre e Directo

António Cagica Rapaz

Aconteceu em meados de 1971, o Belenenses andava mal, Meirim tinha saído e eu não jogava. O Diário de Lisboa quis saber o que se passava e Jorge Soares fez-me uma extensa entrevista que se prolongou em dilatada conversa sobre as mil coisas interessantes que o futebol encerra. No final, convidou-me a criar uma rubrica no jornal, e assim surgiu Livre e Directo.

Eu escrevia as minhas croniquetas que depositava na caixa do correio, nunca tendo ido à redacção até ao dia em que suspeitei que algo de anormal se estava a passar com um artigo que não fora publicado. Tratava-se de um escrito sobre as relações um tanto tensas entre Jimmy Hagan e os jogadores do Benfica. O responsável pelo Desporto no DL era Neves de Sousa que, aberta e repetidamente, desancava o treinador inglês, sendo garagista um dos simpáticos epítetos com que mimoseava o pobre Hagan.

Intrigado, resolvi averiguar. Na escada, cruzei-me com o José Augusto que me disse ter lá ido dar uma entrevista ao Neves de Sousa, pessoa que eu nunca vira. Quando perguntei pelo meu artigo, não esteve com rodeios. No seu estilo tonitruante, disse-me, com todas as letras: - “Você deve estar é maluco. Então, ainda não percebeu que eu não posso com o Hagan? Eu gostava era de ver o Zé Augusto no lugar dele! E você faz um artigo a defender o gajo!” Foi a primeira vez que falei com Neves de Sousa. A crónica nunca saiu e, naturalmente, não voltei a escrever no Diário de Lisboa.

Nunca me tendo passado pela cabeça alguma vez ver ressuscitado o meu Livre e Directo, foi com grande surpresa que, nos anos 80, deparei com uma página de publicidade da Antena 1 onde era mencionado um programa intitulado precisamente Livre e Directo. Escrevi ao Sena Santos, juntando fotocópias de artigos do DL e pedindo uma explicação. Não recebi qualquer resposta, o que não me surpreendeu, devo dizer. Mais tarde, fiz nova tentativa, sem melhor sorte. Até que, nos anos 90, escrevi ao Presidente da RDP, José Manuel Nunes, que me respondeu rapidamente e mandou que o serviço do Desporto me esclarecesse, o que realmente aconteceu.

Em síntese, disseram-me que se tratara de pura coincidência, que o nome do programa se devia ao facto de as pessoas falarem livremente e de a emissão ser em directo. Admirável explicação! Um programa de rádio feito em directo! Que coisa rara e original! Que lembrança prodigiosa!

Depois, um programa onde se falava livremente! Espantoso, inacreditável! Certamente todos os outros deviam continuar a ver visados pela comissão de censura, imagino. Francamente, que falta de imaginação! Chato como sou, não resisti a explicar-lhes que a originalidade do título resulta dos trocadilhos possíveis entre os adjectivos e os substantivos homónimos livre e directo (boxe), bem como da ambiguidade entre livre e directo e livre e indirecto.

Naturalmente, não houve qualquer reacção, ficámos assim conversados e o capítulo Antena 1 encerrado.

Eis senão quando, há poucos anos, encontrei no Diário de Notícias uma rubrica intitulada Livre e Directo. Admirado e um pouco divertido, enviei um fax ao meu velho conhecido António Castro que, para meu espanto, não teve a menor reacção. Tal como não respondeu aos dois faxes seguintes. Outros tantos faxes dirigi ao Director do DN, dr. Bettencourt Resendes, mas todos ficaram sem resposta. Azar o meu…

Mais recentemente, em 29 de Setembro de 2001, foi o Público a ostentar uma rubrica Livre e Directo, assinada por Bruno Prata. Enviei um correio electrónico, mas nunca me responderam. Decididamente, não tenho emenda nem sorte…

Sinceramente, não sei que conclusão tirar, apenas registo com estranheza tanto silêncio. Se eu quiser ser ingénuo (às vezes até sou), ainda fecho os olhos à explicação pueril da Antena 1 e até admito que tenham esquecido o que escrevi em 71. Ou que nunca tenham lido.

Mas se já custa acreditar que o António Castro nunca tenha ouvido a Antena 1, mais inacreditável é os jornalistas do Público não lerem o Diário de Notícias.

Neste mundo do futebol e dos jornais, tudo é possível, mas que é estranho, lá isso é...

quarta-feira, 27 de abril de 2011

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 56



Ah, grande Manel!*
António Cagica Rapaz
O meu pai costumava chegar no carro que saía de Cacilhas às 6.45 e eu debruçava-me para alcançar com a vista a esquina que a Rua Monteiro formava com a calçada, na esperança de ver a sua silhueta imponente dobrar aquele cabo que para mim tanta vez fora de tormentas, na ansiedade de o ver chegar.
Acontecia-me desejar que o meu pai fosse como tantos outros, tivesse o seu empregozinho em Sesimbra, almoçasse em casa, fosse ao Central beber a bica e voltasse cedinho para jantar.
Mas ele navegou por outros mares, abraçou a Marinha, tinha sede de evasão. Depois trocou o mar pela terra, pela miragem do gesso e acabou torturado por uma Secil gigantesca onde a construção transformava carradas de terra em toneladas de gesso, verdadeiro milagre que o dinheiro sujo conseguia. O meu pai recusou, manteve-se vertical e acabou arruinado. O crime talvez não compense mas a virtude ainda menos…
O nosso dia começava com as duas badaladas infalíveis que o Eduardo pregava na nossa porta às sete em ponto. Vinha da Cotovia, trazia-nos o leite e o boletim meteorológico. Anos depois o filho do Eduardo do leite viria a ser guarda-redes na minha equipa de juniores. Curiosamente o futebol tem muito de rural. Joga-se num «campo», fala-se do «terreno» de jogo, se o guardião não tem «leite» e dá o seu «frango», é capaz de comer três ou quatro «batatas» e quem perde fica com um grande «melão»? Mas deixemos por agora o futebol e voltemos à chuva…
Metido na cama eu ficava à escuta receando que ele nos anunciasse um dia inteiro de chuva impiedosa. A chuva era o pesadelo do meu pai, ameaça medonha para as pedreiras, destruindo o trabalho feito, comprometendo o dia a dia, hipotecando o futuro. Eu sofria com isso e por vezes quase invejava quem não estava sujeito às contingências do tempo, quem não nadava com o coração nas mãos, com letras para pagar, à mercê de um aguaceiro.
Naquelas pedreiras, mais do que extrair gesso, o meu pai cavava a sua sepultura…
Partilhando tanta preocupação, tanta angústia, acontecia-me quase invejar os amigos e companheiros que se deitavam sem pensar na chuva e noutros problemas. Sonhava com tranquilidade, paz de espírito, quando só tinha ansiedade permanente, insegurança e incerteza.
Mas depois o meu pai sentava-se à mesa, comia e falava, falava, contava, narrava, reconstruía um universo que afastava as nuvens negras e o ronco surdo do vendaval. E era o «Bartolomeu Dias», a «Faro» e a «Lagos», as viagens a África, as proezas da rapaziada do seu tempo, a taberna do Câncio, as sessões de hipnotismo e espiritismo, as caldeiradas monumentais, os retiros na Arrábida, o escaler e o charuto na praia do tio Abel. E o Pátria.
O Pátria era o combate desigual numa vila dominada pelo União e pelo Vitória, com os Ases a fechar o quadrado.
O Pátria era o mais pequeno, grupo de amigos, companheiros, entusiastas, apaixonados, tesos e irredutíveis.
Os nomes do Mira, do Zé da Faca, do Patachão faziam parte da minha mitologia desse tempo heróico das bolas com atilhos, lenço na testa e balizas às costas.
As aventuras do Pátria quase me faziam esquecer o implacável Eduardo que trazia as bilhas com leite e com chuva às sete em ponto, altura em que começava o Talismã, no Rádio Clube Português. Às sete e meia lá vinha aquela música sinistra que anunciava um folhetim tenebroso narrado e interpretado por uma Manuela Reis que fazia todos os papéis. A minha mãe e a minha prima Judite não falhavam um episódio.
As rivalidades e os golpes baixos assassinaram o Pátria que acabou ferindo dolorosamente o meu pai e alguns fiéis companheiros.
A partir daí o único objectivo (seria vingança?) do meu pai passou a ser acabar com os outros. Não garanto que tenha sido ele a lançar a ideia da fusão, mas pelo menos apoiou-a com todo o entusiasmo até à sua concretização.
Mais do que a fundação de um novo e maior clube, a fusão representou o fim dos que tinham acabado com o Pátria. E para o meu pai o futebol em Sesimbra morreu ali.
Por volta dos meus treze ou catorze anos lembrei-me de ressuscitar o Pátria, com a ajuda de um grupo de companheiros que aprovaram a ideia.
A sede era em casa do João Rasteiro, onde hoje é a lavandaria, ao lado do Américo fotógrafo. Do grupo faziam parte o Pedro Gonçalves, o Luís Filipe, o Penim, o Manel Campino, o Julião, o Zé Júlio e muitos outros.
Limpámos e arranjámos o quintal, dotámo-nos com uma pequena biblioteca, tínhamos um «não-te-irrites», cartas, dominó e mandámos fazer cartões de sócio com o emblema autêntico do Pátria Futebol Clube.
Foi bonito, foi enternecedor, foi piegas e, graças à generosidade do João Rasteiro, tínhamos ali uma casa, um ninho. Juntávamo-nos, brincávamos, sonhávamos…    
Infelizmente a história repetiu-se e um grupo de invejosos tratou de formar uma coisa a que chamaram Juventude, não para criar uma competição salutar mas apenas para aliciar elementos nossos, provocar instabilidade, destruir o Pátria. E resultou. Aos poucos foram saindo e no fim ficámos três.
Os outros dois foram o Pedro e o Manuel Campino. O Pedro ficou como o pai dele teria ficado ao lado do meu. Foi um gesto bonito e Deus sabe que nem sempre estive de acordo com o Pedro.
O Manel era o neto do velho Fartura cuja cocheira ficava ali a dois passos da taberna do mestre Adelino. Morava no Barreiro e vinha passar todas as férias a Sesimbra este Manel que sempre foi apaixonado, arrebatado, um louco maravilhoso, generoso e inteiro, um amigo fixe e leal, rico de fantasia, de humor e de talentos múltiplos, na bola, na pintura, e hoje nos negócios. O pai dele construiu a sepultura do meu pai e a nossa amizade é como o mármore que ele escolheu. O tempo não deixou marcas nem a separação que as nossas vidas ditaram.
O Pátria foi uma brincadeira, foi como a exploração das grutas do farol e as expedições às Caixas de que o Alexandre ainda se há-de rir lá em cima…
Foi um sonho condenado a despertar precoce, projecto sem amanhã, sabíamo-lo todos. Mas foi bom, foi saboroso, durou o que podia durar, como a cabra do senhor Seguin no célebre conto de Alphonse Daudet. Ela sabia que o lobo acabaria por a comer, mas foi na mesma para a montanha. Comeu a erva verde e tenra, rebolou-se nela, contemplou o pôr do sol, embriagou-se com os perfumes da montanha, com as cores deslumbrantes do crepúsculo, sabendo que seria a última vez. Depois lutou, lutou até lhe faltarem as forças quando raiava a alvorada. E o lobo comeu-a…
Se calhar viver é isso mesmo, sonhar, correr atrás de miragens, buscar o inacessível, agarrar o sol com as duas mãos, mergulhar no mar azul em Janeiro, acreditar que há tesouros nas grutas do farol, que na encosta do castelo ainda há mouros com cimitarras cravejadas de rubis, que o Numância emerge da fundura e cruza todas as noites a baía, luzes apagadas.
Só morremos quando perdemos a faculdade de sonhar. No Pátria ficámos três e nenhum de nós esqueceu. Só por isso valeu a pena.
E tudo isto me ocorreu apenas porque o Manel me telefonou há dias e, entre outras coisas, deu-me conta da sua emoção ao ler «O carro das sete».
Porque aquele carro era também o dele, fazia parte do seu, do nosso universo, do nosso inconsciente colectivo. E assim eu vou conseguindo, bem ou mal, arranjar ideias enquanto me emocionar também, enquanto houver um Manel que me dê uma ajuda e enquanto tiverdes paciência para me aturar. É um pedaço de nós que fica graças a ele. Ah, grande Manel!  
____________
* Publicado em O Sesimbrense de Dezembro de 1993.

terça-feira, 26 de abril de 2011

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 46

 

Não há fome que não dê em fartura - (Joel)
António Cagica Rapaz



[da série O que eles poderiam ter dito]

segunda-feira, 25 de abril de 2011

NOVENTA E TAL CONTOS, 55



O muro das lamentações

António Cagica Rapaz

- O pior é que nem conseguimos comunicar...

Era a meio de uma manhã de sábado, no muro da eterna lota, quando o tempo parece parar, em que à nossa frente se desenha, mais do que um fim-de-semana, uma semana sem fim que o domingo prolonga até ao infinito.

Os dois amigos estão sentados no muro, de costas para o mar azul que se estende desde a falda da fortaleza até à linha brumosa do horizonte. Foram companheiros de escola, nunca se perderam de vista ao longo dos anos e estão agora com um pé na velhice.

- E com a tua mulher?

As motas de água começam a sulcar as águas lisas da baía, um barquinho à vela contorna com suavidade a muralha do porto de abrigo, sem pressas, na indiferença das gaivotas. O pequeno autocarro da carreira faz uma pausa no largo da Marinha, o Cristiano barafusta, o GNR passeia, imperturbável, com o livrinho das multas à mão de aplicar, o Garrau acende o lume no “Farol”, no Martelo lê-se o “Expresso”. É sábado, e ainda é manhã.

- Não sei, também pouco falamos desde que...

Aconteceu sem razão aparente. Raramente há uma explicação, sucede apenas, sempre de repente, sem algo que nos pareça justificar, sem que sejamos sequer capazes de detectar os primeiros sinais, os vagos apelos. E, se damos por eles, fingimos não ver, recusamo-nos a acreditar, esperamos que não seja bem assim, que acabe por passar. É difícil, ninguém está preparado para enfrentar a droga.

- Olha, ao fim de tantos anos, parecia que tinha a vida estabilizada. Consegui reformar-me dignamente, os filhos criados, empregados, julguei que ia poder descansar, dedicar-me às coisas que me dão prazer, agarrar no barquito, ir à pesca, ler, ouvir música, ver o tempo passar, repousar a cabeça, respirar fundo, enfim, viver ao meu ritmo. Afinal...

Primeiro, foi o choque devastador. Depois, a incompreensão, a revolta, a raiva, o desalento, o silêncio, a incapacidade de dialogar, a impotência, a vontade de desaparecer ou, pelo menos, de ir para muito longe. Mais tarde, foram os primeiros passos para a compreensão, com a ajuda da mulher e do outro filho, universo familiar fechado pela vergonha e pelo desespero, a esperança na cura de desintoxicação através de um empréstimo que o banco concedeu e que vai ter de suportar por uns anos ainda. E a angústia da recaída, a vida que nunca mais voltará a ser o que foi, se é que alguma vez chegou a ser...

- O pior é que nem sequer conseguimos comunicar...

Dói-lhe aquela sensação de serem, ele e o filho, quase dois estranhos, sem espaço comum a não ser aquela casa onde vivem, tanto quanto aquela coexistência pode ser considerada vida familiar.

- O meu pai, como te recordas, era pescador. E eu sofria, tinha medo, só descansava quando ele voltava do mar. À noite, depois do jantar, não me cansava de o ouvir contar os lances, as talas, as braças, as enviadas, os ventos, as pescarias, as peripécias a bordo, as brincadeiras na loja, as caldeiradas, as sardinhadas, os dias negros de vendaval de invernos intermináveis, a incerteza do amanhã. Gostava de ir ao muro ver a barca ancorar ali em frente e vê-lo depois saltar em terra, quando a aiola encalhava, de gargalhete. Nunca esquecerei os sacrifícios que a minha mãe e o meu pai fizeram para eu poder tirar o quinto ano no Costa Marques. Sempre me senti muito próximo do meu pai, apesar de falar mais com a minha mãe. E, hoje, quando vejo a distância que há entre mim e o meu filho, fico triste. Não há nada, nem cumplicidade, nem ternura, menos ainda ideais comuns, é um desconsolo, um desencanto. E não sei como melhorar a nossa relação, admitindo que ainda seja possível. Seja como for, os melhores anos já estão perdidos.

- Não é forçosamente culpa tua...

- Talvez, mas isso não serve de consolação nem resolve o problema. Isto é como nos divórcios, pouco adianta saber de quem é a culpa. A verdade é que, se não resulta, se não funciona, perdem os dois. E, neste nosso caso, perco mais eu porque sei o que é uma boa relação entre pai e filho, ao passo que ele não sabe. Por tudo isto, não consigo afastar esta frustração, este vazio, esta tristeza. Tenho a impressão de ter procurado estar próximo, de me ter interessado pelas coisas que ele fazia, de que gostava, embora nem sempre pudesse identificar-me com as suas preferências, as suas músicas, a roupa que usava. A gente julga que faz bem, mas só faz o que pode. Por isto ou por aquilo, não consegui, não fui capaz, o que fiz foi pouco ou mau, não sei. E o resultado é esta mágoa que me pesa em cada manhã cinzenta. É um mar que não acaba e não leva a lado algum. Olha, tu nem sabes a sorte que tens, sem problemas destes, dá-te por feliz.

O amigo não respondeu. Desviou o olhar, contemplou o mar, hesitou, ainda abriu a boca, mas não falou. Após prolongado silêncio, lá acabou por alinhavar duas frases sem nexo, desculpou-se com o almoço e foi-se embora. Sentiu-se mal, mal pelo amigo e mal por si próprio, incapaz de falar de si, da melancolia que disfarça, dos tormentos que esconde. Ainda esteve para voltar atrás, mas prosseguiu, virando costas ao mar e ao muro das lamentações. Não será ainda desta vez...

1999