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terça-feira, 30 de novembro de 2010

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 26



Pleonasmo: PolíCIA.
António Cagica Rapaz



[da série Coisas]

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 34


A Natureza faz bem as coisas

António Cagica Rapaz

Há no nosso quotidiano pequenas coisas, gestos que repetimos e a que não atribuimos valor especial. Porém, alguns deles vão ganhando, lenta e subtilmente, no nosso espírito, contornos e significados que, um dia, sem sabermos como, se tornam claros e impressivos. Abrir e fechar uma janela é gesto que podemos realizar mil vezes, uma vida inteira, sem lhes juntarmos a menor partícula de emoção. Mas pode muito bem suceder que, de repente, tomemos consciência de que uma janela que se abre é muito mais do que um fecho que puxamos e duas portadas que afastamos. Aos poucos, foi surgindo em nós um sentimento insinuante associado àquele gesto que adquiriu, sem nos darmos conta, um simbolismo inesperado e maravilhoso. E então apercebemo-nos de que abrir uma janela pode ser como abrir o nosso coração para uma paisagem, para um cantinho do nosso mundo, para a vida, para o amor. Abrir uma janela é como um pai que abre os braços para aconchegar no peito o filho que corre para ele. Como abraçarmos a mulher que amamos ou o amigo leal. Abrir uma janela pode ser fechar os olhos por um instante, deixar entrar o perfume do campo ou a brisa do mar. E voltar a abri-los para contemplarmos, longa e silenciosamente, o ondular do trigo, o oceano a perder de vista, o céu infinito, rodeando pela cintura alguém que partilha connosco esse momento abençoado. Uma andorinha que passa, em voo rasante, interrompe a contemplação e, com febrilidade, vamos abrindo, uma a uma, todas as janelas, com a excitação de crianças às voltas com os brinquedos em manhã de Natal. Fechar uma janela é estar de partida, a penumbra que já invade a casa e a nossa casa. Foi ao fechar uma janela que vi a Cidália...

Acenei-lhe e trocámos duas frases de saudação. Por aí teríamos ficado se ela não tivesse acrescentado, com voz inquieta:

- O homem está no hospital.

O homem podia ser o marido, mas é o pai, o patriarca, o carvalho austero que a Soraia transforma em frágil vime com um olhar meigo ou beicinho sentido. A sua voz sonora faz coro com a natureza, ouvi-lo à distância tranquiliza, estamos com a nossa gente, está tudo no seu lugar. Não preciso de o ver para saber que está, ainda agora o ouvi chamar pelo Rodrigo. O Fernando foi buscar lenha à Raposa, o Inverno não tarda, os sobreiros protegem do vento oeste, os cães já se enroscaram, o pão está cozido, o dia vai chegando ao fim. E o homem está lá...

A Soraia não percebe, revolta-se contra os médicos que não deixam o avô sair do hospital. É a primeira vez que sente receio, finge não compreender, para afastar aquele sentimento estranho, aquela forma de medo vago, impalpável, muito diferente do que sente quando matam o porco.

A Natureza não se engana, nós estamos habituados a uma certa ordem e aquele quadro só faz sentido com o patriarca a comandar as operações do labor quotidiano ou arrimado à casa, contemplando o pôr do sol.

Agora, a Soraia vai brincando aos comerinhos, às casinhas, forma que tem de afugentar angústias. O Rodrigo senta-se horas esquecidas no tractor, imitando o pai. O quadro não é o mesmo, falta a figura maior do presépio. Mas tudo vai voltar ao seu lugar, o homem vai regressar não tarda, a Natureza faz bem as coisas...

1998

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 30

as crónicas da Eventos...





A respeito de…*

António Cagica Rapaz

Algumas das pessoas que tiveram a amabilidade de assistir ao lançamento das minhas “Bonecas Russas” foram mais longe na gentileza e solicitaram-me uma dedicatória, como se faz com os escritores a sério. Eu não me desmanchei, lá fui rabiscando o que me veio à cabeça e, em certos casos, em que havia pouca ou nenhuma intimidade, rematei com um beijinho que qualifiquei de “respeituoso”. Recordo-me de, na altura e naquela agitação, ter pensado primeiro em “afectuoso” mas o que afinal acabou por me sair foi um defeituoso “respeituoso”. Não uma mas duas ou três vezes, imagine-se, sem que tal me tivesse chocado. Só na manhã seguinte, muito cedo, tive como uma revelação, uma espécie de campainha que tocou na minha cabeça e me deixou perplexo. De repente, tomei consciência de ter escrito incorrectamente a palavra. É verdade que houve a influência do afectuoso; é certo também que se escreve, entre outros, delituoso, monstruoso, tortuoso, ou sinuoso. Mas não respeituoso. Por isso, aqui estou a penitenciar-me e a pedir às magnânimas pessoas contempladas com o tal beijinho “respeituoso” que vejam nele um gesto de respeito salpicado de afecto e o aceitem como uma espécie de brinde da Farinha Amparo, uma atenção do autor, uma surpresa mais, uma boneca russa adicional. Pelo mesmo preço.

Não foi este o caso, mas a verdade é que o gosto pelas palavras e pelas próprias letras leva-me a caprichos que podem revelar-se traiçoeiros. Por exemplo, o ç parece-me apropriado para carroça, com a cedilha a lembrar o pau de apoio e sustentação. Mas ainda bem que carrossel não ligou à carroça mas sim ao francês carrousel, pois a cedilha do c, para mim, representa um peso, um ferro ao fundo, um travão à liberdade de movimento que é a razão de ser do engenho. Aliás, os dois ss fazem até lembrar o carrossel 8 do arraial da Festa das Chagas de outro tempo.

Da mesma forma, dansar me agrada muito mais do que dançar, tem outra leveza, outra graciosidade, está mais em harmonia com o que significa. Dançar é a forma correcta, é verdade, mas aquela cedilha faz muito mais pensar em pés de chumbo do que em Cisnes do Lago…

Também não sei ao certo porquê, gostaria mais de escrever jeito com g. Não sei, acho o g muito mais bonito que o j, e nenhuma graça achava quando lia Cajica em vez de Cagica. Não sei se é das duas pintinhas seguidas, se da sua aparente fragilidade, só sei que não simpatizo com o jota. Claro, são apenas devaneios meus, daí não vem grande mal ao mundo.

Posto isto, aqui fica a admissão do lapso, esperando que os interessados a aceitem juntamente com os meus cumprimentos afectuosos. E respeitosos, está bem de ver.

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* Publicado no n.º 38 de Sesimbra Eventos, de Junho/Julho de 2005.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 34



Isabel*

António Cagica Rapaz

A autoestrada é um longo tapete que se vai desenrolando à nossa frente, cinzento e interminável, monótono e eficaz. Por vezes temos mesmo a sensação dos ciclistas que pedalam numa bicicleta colocada sobre rolos, andamos muito sem sair do mesmo sítio. E, de repente, apercebemo-nos de que chegámos, porque pagamos a portagem e porque estamos no fim do percurso. Nesse momento sentimos uma mistura de alívio e decepção. Alívio, porque chegámos bem e depressa. Decepção, porque passámos ao lado, longe dos caminhos antigos. Durante anos percorremos itinerários, habituámo-nos a atravessar povoações, a identificar curvas, rectas, subidas, cruzamentos, a descortinar paisagens, vales frondosos, uma casinha no alto do monte, um moinho, pessoas na berma da estrada ou à volta das casas, os mil pormenores que constituíam o quadro da nossa viagem.

Viajar de carro não era apenas avançar por uma estrada. Pelo contrário esta fazia parte de um espaço global, era um dos seus elementos. Seria menos funcional, menos rápido, menos eficaz, mas mais humano, mais bonito, mais poético.

Com os anos, fomos integrando aquelas imagens no nosso universo cognitivo, aquele café antes da curva, aquela fonte a meio da subida, aquele outeiro para lá do riacho…

Da mesma forma integramos no nosso universo afectivo as pessoas que conhecemos, de quem gostamos. A partir de certa altura elas vão ocupando um lugar determinado no nosso presépio interior, estão cá dentro, fazem parte de nós, habituamo-nos a viver com elas, estão em nós. Como os brinquedos da nossa meninice que conservamos na prateleira imaginária do nosso quarto. Estão ali, estão bem…

A vida leva-nos para aqui e para ali e acontece-nos recusar a estrada antiga, desprezar a paisagem encantadora, perdemos de vista o carro de bois a caminho da eira e lá vamos, a alta velocidade, cheios de pressa de chegar. Para depressa partirmos. A viagem, o espaço e o tempo, tudo morreu. Só conta chegar e partir…

Que tristeza se um dia rasgarem uma pista infernal entre Sesimbra e Setúbal que nos roube o encanto do Alto das Vinhas, o perfume próximo da Arrábida, a frescura da Aldeia de Irmãos, o recato de Oleiros. Quando preferimos a autoestrada cedemos à tentação, desumanizamo-nos um pouco.

O mesmo sucede com a amizade, quando a distância se coloca entre nós, quando começamos a ver-nos só espaçadamente. É certo que os nossos amigos continuam cá dentro, fazem parte de nós, mas, de algum modo, vão-se transformando em estatuetas, entidades difusas, imagens fixas, padrões, símbolos, pouco mais que irreais. No fundo, é uma forma derrapante, se não de esquecimento, pelo menos de letargia e diluição. Como alguém que sabe que o mar é azul e bonito e, por isso, resolve que não é preciso vê-lo todos os dias…

Meu caro António, todas estas ideias me atravessaram o espírito, assim, confusamente, desordenadamente, há tempos, numa autoestrada, algures, perto de Leiria. Por associação de recordações, lembrei-me de Coimbra, da estrada antiga, do comboio que parava em todas, Albergaria dos Doze, Alfarelos, Taveiro. Lembrei-me de Coimbra, lembrei-me de vocês, lembrei-me intensamente da Isabel…

Há muito não me acontecia, chorei e sorri, porque a imagem da Isabel é sempre um sorriso luminoso, maravilhoso, resplendente. Chorei enquanto conduzia, enquanto desfilavam à minha frente quilómetros e recordações, avançando na estrada, recuando no tempo.

Quando deixei, pela primeira vez, a minha casa fui por essa estrada fora, a caminho de Coimbra aproveitando a boleia de uns amigos que iam para o Porto. Esse mesmo Porto onde anos depois vocês viveriam e onde nos voltaríamos a reunir.

Praticamente saí da minha para a vossa casa, fui de imediato adoptado, passei a ser o filho mais velho. Tive a sensação de entrar num romance de Eça de Queirós, com as vossas raízes beirãs, a memória de Oliveira do Conde, a presença do senhor abade Varandas, a nobreza natural da avó Natália de sorriso bondoso, os fortes laços familiares, o calor da lareira junto da qual o Kari se enroscava até o Zé Manel o desafiar para as diabruras próprias da sua idade traquina.

E pensar eu que não fui mais cedo a vossa casa porque imaginava que um director de fábrica de cerveja tinha de ser velho e barrigudo! Felizmente o Afonso apareceu e obrigou-me a acompanhá-lo, levou-me até vós. E a Isabel, logo no primeiro dia, ditou a sentença, fiquei obrigado a visitar-vos todos os dias. Conivente, o trolley que vinha do Calhabé conhecia bem a estrada da Beira e, ao fim da tarde, depois do treino da Académica, parava à vossa porta. Só me custava, mais tarde, ter de subir a rua do Quebra Costas, do arco de Almedina até ao largo da Sé Velha, para chegar ao meu quarto, na travessa do Cabido. Era Coimbra…

Anos depois foi o Porto, outra etapa na carreira profissional do António e, para mim, paragem ocasional durante o serviço militar. Assim voltei ao seio da família Fonseca. O Kari crescera menos que o Zé Manel, mas ladrava alegremente quando brincava connosco. A Graça começava a refugiar-se na Ressaca, café fronteiro ao mar, ali na Foz. Era em 1970…

Depois foi a desintegração, cada um para seu lado, a avó Natália disse-nos um adeus derradeiro, o padre Varandas afastou-se, subindo na hierarquia, o António Afonso abalou para a vida, eu ausentei-me demoradamente. Ficaram vocês, o António e a Isabel, a energia calorosa e a ternura frágil, a bondade vigorosa e o sorriso enternecedor.

O António gosta de música suave, aprecia a bossa nova. Recordo-me da poética confissão do desafinado: “fotografei você na minha Rolleiflex, revelou-se sua enorme ingratidão”. De alguma maneira, foi o que fiz, fotografei-vos, fiquei com vocês cá dentro, mas a ingratidão terá sido minha porque não fiz tanto esforço quanto deveria para vos ver mais vezes. Contentei-me com o sorriso da Isabel, a recordação da sua bondade, da sua ternura, das manifestações de afecto que conservo intactas. É bom sabermos, sentirmos que gostam de nós, é bom termos amigos assim, é bom gostar de pessoas como vocês, mas é preciso dizê-lo, é preciso mostrar essa amizade, praticá-la, fortalecê-la, saboreá-la, apertarmo-nos nos braços, estarmos juntos, partilharmos emoções. Não chega sabermos, não chega termos a certeza dessa amizade, é preciso vivê-la. Porque um dia o telefone toca em nossa casa e não é a Isabel, não será nunca mais a Isabel, a Isabel já não está, nunca mais estará. E só então percebemos … Julgamos que nos habituamos à ideia da fatalidade, do inevitável, julgamos que é assim, quase aceitamos que é a ordem natural das coisas. E fomos colocando a Isabel na tal galeria de recordações queridas. Queridas mas distantes, prematura e estupidamente distantes. E, de repente, em plena autoestrada, algures, acordamos, tomamos consciência, temos a revelação fulgurante da proximidade e da verdadeira importância que uma pessoa tem na nossa vida. Com maravilhosa intensidade senti, recordei o sorriso luminoso da Isabel. Recordo nitidamente a sua voz, as expressões tão suas, agora que a fui buscar, sem saber como, à galeria onde a tinha colocado, também inconscientemente.

A amizade não é chegar, é viajar, percorrer passo a passo, de mão dada, de braço dado, de abraço em abraço, próximos, presentes, todos.

Amizade não é acenar de longe, é parar, para abraçar, para dizer com e sem palavras que gostamos. Não sei se vos disse, se fui capaz de vos dizer, como gostaria e como devia, quanto gosto de vocês. Desculpa António, perdoa-me Isabel…

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*Publicado na edição de Setembro de 1995 de O Sesimbrense.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 25



Andava radiante com o novo relógio, desejoso que lhe perguntassem as horas. E logo respondia:
"Duas e um quartzo".
António Cagica Rapaz



[da série Coisas]

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 33




Vítor Batista

António Cagica Rapaz

O sol iluminava a baía de Sesimbra e os nadadores lançavam-se à água lá no Caneiro tentando acertar o ritmo da braçada na travessia anual organizada pelo Clube Naval.

O Alfredo Filipe, no seu estilo pujante e elegante, deslizava como um golfinho, embora soubesse que o vencedor seria o Vaz Jorge ou outro especialista do Algés e Dafundo. A travessia da baía era a única prova grande e uma bela festa na nossa terra, com o Zé Brás de megafone em punho, as barcas e as aiolas enfeitadas, o almoço colorido no Hotel Espadarte. Havia quem alinhasse à partida, nadasse até à Califórnia e desistisse, garantindo assim um lugar, se não na meta de chegada, pelo menos à mesa do almoço...

Era o Verão calmo e quente, numa Sesimbra tranquila. E era o defeso do futebol. Porém a febre da bola subia nessa maré de tréguas e o Desportivo organizava torneios populares que apaixonavam a vila e revelavam talentos. Clubes de bairro, rivalidade de rua, orgulho, paixão, Marítimo, Malta Brava, SAC, Horta, Espadarte, Albano, Bacalhau, Zé Barbeiro, Gato, Hélio, Manel Rosa, Zé António e Vítor Batista.

O primeiro com equipamentos a rigor e pretensões a bordo foi o Espadarte, sob o impulso do Vítor Batista. Na família, jogador a sério fora o irmão, o Zé, belíssimo avançado-centro, rápido, ágil, hábil no jogo de cabeça, que poderia ter feito carreira se não tivesse perdido o controlo e agredido o árbitro, num jogo com o Seixal.

Prematuramente privado da competição oficial, o Zé Batista saltava de contente e marcava golos em série com a camisola do Espadarte, onde pontificava o José António, excelente defesa central que a burocracia não deixou ir mais longe. Na baliza, o Palhete, o elegante Cardim, abria a boca e exibia um estilo inconfundível, enquanto o dinâmico João Pedroto varria o meio campo. Mas o maestro era o Vítor Batista, de bigode à Germano e entradas, de cabelo, à Vasques.

Assim nasceu para o futebol este Vítor que haveria de envergar, durante muitos anos, a camisola do Desportivo, com o número onze nas costas e a braçadeira de capitão. Estava o Sesimbra na terceira divisão e o Vítor armava jogo na esquerda, acabando sempre por centrar para a cabeça demolidora do Zé Serafim.

As finais com o Farense foram autênticas epopeias, partidas de arrasar que culminaram com uma negra em Beja. O Desportivo venceu por um a zero, golo do Vítor Batista. Era a subida à segunda divisão, a festa durou dias. Os peixes estranharam a ausência de barcos e ninguém lhes explicou que Sesimbra estava em delírio...

Durante anos, o Vítor Batista foi o cérebro de uma equipa onde o Fragata era um leão. Como tantos amadores, o Vítor não se considerava um jogador da bola como os que aparecem nos jornais. Depois dos treinos, retornava à sua mercearia e voltava a ser o cidadão anónimo, leitor interessado dos jornais desportivos, todo ele paixão ingénua e sincera. À segunda-feira, o Vítor já não era o capitão do Desportivo mas o sócio do Benfica que criticava o árbitro que roubou um penalty ao seu clube. E falava do Eusébio com a admiração de qualquer profano que nunca calçou botas de futebol. Regularmente, ia à Luz ver o glorioso, com o Hélio e os outros, repartia-se entre o Desportivo, a mercearia, as piadas do Gil e os ditos do Zé Barbeiro, lagarto até às patilhas.

Depois de uma dessas partidas europeias, o Vítor regressou a casa, cansado. E, nessa noite, morreu, suavemente, discretamente, como vivera, menos de quarenta anos.

O Benfica continua a jogar, o Sesimbra já desceu e voltou a subir à segunda divisão, a bola não deixou de rolar. O Gil deve sentir-lhe a falta em cada segunda-feira de manhã, na altura do rescaldo da jornada.

O Vítor Batista saiu do futebol e da vida com a discrição e a humildade com que comandava o Espadarte nas tardes quentes de um Verão que vai ficando longe na memória e na saudade...

1981

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 29

as crónicas da Eventos...



Carlos*

António Cagica Rapaz

No início dos anos 50, nós morávamos no prédio do Gá, na rua da Fé, quando o Pedro Muleta (filho do velho Justino das barracas da praia da doca) procurou o meu pai para lhe pedir emprestados três mil escudos. Recordo-me das suas palavras, podia ter falado em três contos, mas não, foi três mil escudos que disse, talvez numa tentativa tão eufemística de suavizar a dimensão do pedido. Na altura, era uma quantia avultada, e o bom do Pedro ter-se-á fiado no aparato das pedreiras de gesso, ignorando que, na realidade, elas não passavam de ilusão e de abismos onde o meu pai só escavou desgraça. Por isso mesmo, despediu-se como entrara, cabisbaixo e amargurado, como todos quantos, por infortúnio seu, precisam de pedir…

Da conversa, porém, resultou a nossa mudança para o rés-do-chão da moradia da família Justino, situada entre as vivendas do patriarca Palmela, a norte, e do Dr. Fernando Lopes, a sul. Pouco tempo depois, a necessidade obrigaria à venda da moradia que foi comprada pela família Palmela por uns magros 48 contos.

A D. Beatriz foi marcante no panorama do ensino primário, tendo-se distinguido pela sua competência e pela forma como castigava os alunos. Foi professora da minha mãe e minha também. Cheguei a comer à sua mesa, intimidado, quase aterrorizado, entre a D. Beatriz e o austero Palmela. Era um ambiente de pesadelo e, anos mais tarde, essa sensação viria a confirmar-se quando o herdeiro intentou contra a minha mãe um vergonhoso processo de despejo por (como justificou) precisar da casa para passar férias…

Felizmente, a sul, o horizonte era bem diferente, e a casa do dr. Fernando Lopes e da D. Stella foi, para mim e para a minha irmã, um oásis de paz e conforto, um verdadeiro porto de abrigo. Teria eu uns oito anos quando conheci o Carlos Manuel Gouveia Lopes, um rapazinho amoroso, com quatro anos e cabelo encaracolado…

O muro que separava as nossas casas declinava na extremidade próxima da rua, na zona da varanda, e cedo aprendi a saltá-lo para ir brincar com o Carlos, naquele universo deslumbrante que era uma casa bonita e abastada onde fui tratado com inesquecível ternura por essa Senhora maravilhosa que era a D. Stella.

Com o Carlos, brincávamos horas infinitas, em intermináveis partidas de monopólio, aos caixeiros-viajantes que se deslocavam de triciclo, ao mecano e ao lego, às mil diabruras próprias da idade. Nunca tivemos a menor disputa, nunca teve caprichos de menino rico, nunca me fez sentir diferente, e no seio daquela família encontrei hospitalidade, protecção e ajuda afectiva.

Depressa compreendi que a vida é assim feita, uma sociedade sem classes só existe no reino da utopia. E esta realidade até nem custa a aceitar quando sentimos a nosso lado pessoas como a D. Stella que não se limitava a rezar o terço que nós, enfadados, acompanhávamos murmurando “rogai por nós”. Ela era a bondade, a gentileza, a doçura, o amor, tudo reunido numa pessoa de rara beleza, física e espiritual.

Às quintas-feiras, infalivelmente, o dr. Fernando Lopes e a D. Stella iam a Lisboa e para nós era dia de festa porque, como dois principezinhos, almoçávamos na varanda, servidos pela Álvara. Depois, entregávamo-nos ao nosso desporto favorito, de cócoras, como os guarda-redes do hóquei, tendo os vasos por balizas e utilizando uma raqueta de ping-pong. Assim íamos marcando uns golitos até à hora do lanche que incluía sempre um copo de deliciosa groselha. Certa noite, clandestinamente, abusámos da “Marie Brizard” e acabámos no quintal, eufóricos e incansáveis, escarranchados em cadeiras de praia que, uma vez fechadas, faziam de mota ou de cavalo. Tudo era novidade e regalo para mim, pelava-me por tão boas coisas. Partilhei a intimidade da família, brinquei, convivi e aprendi a viver em casa da tia Stella, como me habituei a tratá-la, em particular desde que conheci o tio Nuno e o tio Jó…

Certo dia, o Carlos teve uma saída que já deixava entrever um espírito fino e imaginativo. Ao ver passar o meu pai e desconhecendo o seu nome, saudou-o desta forma original e afectuosa: “Boa tarde, senhor pai do Tó Manel”. A nossa cumplicidade foi sempre sem falha, a nossa amizade sem mácula. O Carlos teve a felicidade de ter nascido no seio de uma família maravilhosa, entre o amor e o carinho da mãe e a presença forte, tranquilizadora de um pai que garantia estabilidade e segurança. O futuro foi, para ele, desde muito cedo, um mar tranquilo a perder de vista, sem incógnitas nem angústias, feliz e merecidamente.

Andámos juntos no colégio, e o Carlos foi meu cúmplice num namoro que marcou a minha vida. Mais tarde, acompanhei de perto os primeiros passos rumo a um casamento que haveria de fazer dele um jovem avô feliz.

Dois anos depois, foi a vez do Carlos e da Ana apadrinharem o meu casamento, era a continuação da nossa boa cumplicidade…

Com os anos que por ele passam sem deixar marcas, o Carlos ganhou a atitude segura do pai e conservou o encanto da mãe. Apesar de ser herdeiro de um nome, de um estatuto social e de um património, soube escolher o seu caminho, criar um estilo, afirmar-se. O tempo foi sublinhando uma distinção com o seu quê de britânica, uma elegância descontraída, uma classe natural, um toque aristocrático a que nem faltou, durante anos, um bonito bigode. Não precisou o Carlos de aprender a seduzir nem a colocar a voz bem timbrada para entrar na política, opção que foi para mim uma surpresa, talvez por saber que não tem a menor necessidade de favores nem de benesses, porventura por o julgar (ou imaginar) tímido, imagens de infância que nós teimamos em conservar inalteradas, como se o menino que brincava com o mecano não fosse agora um homem feito, um engenheiro com carreira.

O Carlos é, há vários anos, uma figura pública prestigiada e nunca deixou de ser um homem encantador e caloroso. Nem a política o estragou…
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*Publicado no n.º 29 de Sesimbra Eventos, de Fevereiro/Março de 2004.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 33


Breve*

António Cagica Rapaz

Tal como sucedera há dois anos, os alunos do Dr. Costa Marques reuniram-se num almoço de confraternização. Desta vez foi na Maçã, no Concorde, e comeu-se ainda pior do que nas Villas de Sesimbra. Não por culpa das incansáveis organizadoras nem do meu bom amigo Carlos Farinha ausente em parte incerta, algures nos confins do Oriente, segundo rezam escrituras de faquires, encantadores de serpentes e engolidores de navalhas de barba.

Antes do parco e porco almoço houve missa e romagem ao cemitério onde repousam tantos dos nossos familiares e amigos. Na véspera, mais um fora levado à sua última morada, como eufemísticamente se diz, de seu nome Augusto Sobral, um homem que participou significativamente na vida associativa e cultural da nossa terra, no Desportivo e neste Jornal, poeta popular de raiz vincadamente sesimbrense.

Na despedida, no recolhimento das pessoas mais chegadas, lá esteve o Pedro Filipe, companheiro de várias frentes e que lhe lançou, com um sorriso cheio de ternura, “Teimoso!”

E foi. Augusto Sobral foi teimoso, senhor das suas opiniões, porventura pouco tolerante, um tanto amargo, em dissonância com o mundo, remando contra uma maré invisível. Pouco contacto tivemos, mas ficou-me a sensação de um certo desperdício, alguma frustração pelo que ele poderia ter feito se tivesse sido capaz de outra abertura aos outros, pois talento, inteligência e conhecimentos tinha.

Melhor conheci o irmão, Joaquim, certamente menos lido, sem preocupações intelectuais, mas de bela feitura humana, franco e caloroso. O tio Joaquim está na minha caderneta, na galeria singela das minhas figuras preferidas, com o avental sobre os joelhos, os banquinhos de madeira na loja minúscula a cheirar a cabedal, a gaiola dos trinados luminosos nas manhãs frescas da rua à espera do sol.

Já vos contei da sua paciência ao escutar as minhas narrativas inocentes e excitadas de verões heróicos na ribeira dos Torrões, as expedições ao velho moinho para trocar um saco de trigo montado num burro capaz de pedir meças ao “Rocinante” do D. Quixote.

Enquanto me ouvia, sorrindo, lá ia colocando umas biqueiras nos sapatos estafados nas correrias infindáveis atrás da bola. Depois era a minha vez de me deliciar com as suas descrições pausadas de pescarias mágicas das segundas-feiras, saltando de rocha em penedo, de cana comprida na mão, na lonjura do Caneiro. Era o empatar minucioso dos anzóis, o segredo do engodo, a escolha criteriosa do local, o tempo certo da maré, a certeza no lançar, a sensibilidade na cana que prolonga o braço, o fascínio da água lusa, a paixão do infinito, o apelo da madrugada. Não sei nem importa se ele me contou estas coisas, se as contou assim, creio bem que não, mas foi o que me ficou, é a imagem (porventura idealizada) que conservo do tio Joaquim Sobral que largava o avental, a sovela e o martelo ao raiar da aurora, de balde na mão, homem de uma cana, a caminho das rochas, para ver nascer o sol, abraçar o mar, respirar a vida. E pescar…

O irmão Augusto também foi hábil pescador, mais explicado, mais científico, mais elaborado. Indesmentível era o seu amor a Sesimbra e talvez ele pudesse ter ajudado a lutar contra esta descaracterização, esta perda progressiva da identidade da nossa terra incapaz de conservar o perfume do alecrim nas ruas enfeitadas e desfigurada por escolas de samba que nada têm de português e, menos ainda, de sesimbrense. Fica-nos o sabor de uma obra inacabada, mas cada um faz o que pode, como pode e como sabe. Foi-se Augusto Sobral e o tio Joaquim está com graves problemas de visão. É o nosso universo que se vai desmoronando, janelas sobre a vida, sobre o passado, que se vão fechando, aqui e ali. Depois da despedida, ao sair da capela, cruzei-me com o Eduardo Marques, ainda visivelmente afectado pelo drama que enlutou Sesimbra, ao afundar-se o seu barco. O filho do Eduardo é internacional de hóquei em patins para nosso orgulho e satisfação. Daí que me veio a recordação do pesadelo que era para o velho Elias ver chegar a rapaziada de (raros) patins na mão à esplanada dos bombeiros, o único sítio onde improvisadamente se patinava.

Nem sonhar em jogar hóquei pois não havia sticks e havia vidros frágeis. Às vezes lá fazíamos umas simulações, protegidos pela presença do Luís Filipe Batista, filho do Comandante.
Pois o filho do tio Elias, o mais velho, o Diamantino, casou com a filha do nosso Joaquim Sobral. O mundo é de facto pequeno. E no almoço dos alunos do Dr. Costa Marques lá estavam o Luís Conceição e a minha prima Carolina, pais de outro internacional de hóquei, o Mário Rui.

Os saudosistas encartados, ferrenhos e assanhados, levam a vida a dizer que antigamente é que era bom, mas veja-se o caso do Ginásio Sede que permite não só a prática de múltiplas modalidades mas também a revelação e a afirmação de talentos como o Eduardo e o Mário. Talento tinha também o pai Luís, mas não levou o futebol a sério. O pai Eduardo chegou a internacional júnior, ali, que nem ginjas…!

Ora este Ginásio é uma obra que se deve à abnegação de um punhado de sesimbrenses entre os quais Augusto Sobral, referência justa que se enquadra nesta reflexão contrastada, misto de melancolia e reconhecimento.

Foi com grande alegria que revi o padre Carlos que me baptizou e que (numa ausência pontual do padre Abílio) haveria de baptizar igualmente a minha filha.

Disse-lhe do meu sincero apreço pelos seus escritos no Jornal de Sesimbra, ricos de erudição e tonalidade poética e trocámos impressões linguísticas com o Dr. Nabais.

E lá foi prosseguindo o almoço da saudade com o habitual rosário de exclamações, a contemplação disfarçada dos efeitos devastadores do tempo, a hipocrisia simpática das avaliações recíprocas, a consolação de que há sempre quem esteja pior.

Há os que estão mais velhos, mais gordos, mais esquisitos. E há os que já não estão, connosco, entre nós, como a Maria Irene e a Silvana que lá de cima devem ter rido das nossas figuras, sorrido com alguma saudade. Pelo Augusto Sobral terão ficado a saber as últimas desta terra que pisamos e que nos há-de pisar um dia.

Chegou a Primavera, o Verão não vai tardar, qualquer dia é o nevoeiro do Outono das folhas que caem no regaço do Inverno. É a vida breve, a nossa fragilidade, a nossa insignificância, o pouco que somos, o nada que valemos, o muito que nos julgamos.

Aos poucos vão-se as figuras do nosso presépio, fecham-se as janelas das nossas recordações, em cada confraternização há ausentes, sentimos-lhes a falta, marcamos-lhes falta.

Por isso é bom apertarmo-nos nos braços uns dos outros, olharmo-nos sem querermos ver rugas nem os cabelos brancos. É uma ilusão colectiva, benigna e inocente, não faz mal, estamos todos na mesma, fingimos acreditar. Ficam as promessas e um sabor a pouco. Depois cada um mete-se no seu carro e desaparece.

Ninguém tem culpa, somos todos culpados. É a vida que nos aproxima na escola, no catecismo, na Mocidade. É a vida que nos afasta na tropa, no casamento, nos empregos.

É isto, é aquilo, é o tempo que passa e não chega senão para nos vermos uma vez por ano, para nos olharmos, para nos abraçarmos, para rirmos e comermos mal.

Se calhar é o castigo para o prazer destes reencontros, o tributo a pagar.

Depois somos aspirados de novo pela vida e voltamos a ser como as paralelas que nunca se encontram.

Por isso é bom comer mal mas estar com amigos, reencontramo-nos, a nós próprios e aos outros, voltarmos a ser jovens por umas horas de ilusão.

Foi assim, foi bom, foi breve, como breve é a vida…
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*Publicado na edição de Abril de 1995 de O Sesimbrense.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 24



As voltas que a vida dá. Antes do 25 de Abril, suspeitava-se que era agente da passiva. Hoje é um sujeito importante, até lhe gabam os predicados...
António Cagica Rapaz



[da série Coisas]

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 32


O tocador

António Cagica Rapaz

Nos anos cinquenta, a povoação das Caixas era uma aglomeração tranquila, escala rotineira da carreira do Covas entre Sesimbra e Alfarim. À beira da estrada, a taberna do Baratinha era o apeadeiro, o ponto de referência, o farol da aldeia. Ao lado, o palheiro do tio Meano, com a roda de carroça encostada.

A estrada poeirenta animava-se duas vezes por dia, na alvura da manhã e na suavidade do entardecer, à passagem da velha Panhard conduzida pelo Pintassilgo. Ao raiar do dia, a camioneta parava em frente da taberna do Baratinha e, por trás dos vidros embaciados, surgia a trémula claridade do candeeiro a petróleo do ti Manel. Era um novo dia que despertava, saudado pelo galo do tio Meano, imperial e tonitruante.

Ao fim da tarde apeavam-se “à do Baratinha” as pessoas que tinham ido à vila, a longínqua Sesimbra, onde havia, segundo constava, uma imensidão de água chamada mar. Dele vinha o peixe que chegava ao campo em caixas manhosas, em equilíbrio periclitante na traseira de bicicleta velha ou motorizada cavernosa. O peixeiro sacava da gaita e tocava a reunir à volta de meia dúzia de cavalas, carapaus moiros, fains e laretas. As mulheres das Caixas iam a Sesimbra vender couves, cenouras, nabos arrancados à terra, de véspera, nas ribeiras húmidas dos Torrões ou da Amieira. Saíam de casa às quatro da manhã, palmilhando atrás do burro, estrada fora, com o tempo que Deus desse. Depois de aturarem, com paciência e resignação, as regateiras das pexitas que tentavam tirar dois tostões num molhinho de grelos ou num raminho de salsa, comiam uma bucha e voltavam a casa, agora montadas nos burricos, Santana acima, Covas da Raposa adiante, Zambujal abaixo, até avistarem o moinho das Caixas de velas dolentes que giravam tranquilamente, ronronando em voz baixa, moendo o trigo, na paz do Senhor...

Ao lado da taberna do Baratinha ficava uma espécie de armazém, de terra batida, com um palanque ao fundo. Era o salão de baile. O Verão era o tempo da debulha, das vindimas e das corridas de bicicleta. O melhor corredor era o Licínio, namorado da Maria Amália, mocetona trigueira de olhos pestanudos, a mais bonita da aldeia e redondezas. O Verão era também a época dos bailes “à do Baratinha”. Os preparativos começavam no sábado. O Manel Pedro andava na armação, mas, em certas ocasiões, exercia a função de barbeiro da aldeia. Instalava-se no salão de baile e toca a rapar nucas e aparar patilhas. Lá fora, as malhas do chinquilho iam caindo com estrondo nos tabuleiros...

No domingo, após o almoço, começavam a aparecer os rapazes, de bicicleta à corredor, risco ao lado, brilhantina, fatinho à papo-seco, calça recolhida por uma mola, de prevenção contra o óleo da corrente. Na recta comprida que se estende até à curva do lagar, é o desfile das bicicletas, pequenas corridas, esticões ao desafio até ao poço da quinta, picardias e larachas, um certo perfume de rivalidade, é dia de festa, há baile nas Caixas.

O salão é salpicado com precaução, para não fazer poeira, e as janelas permanecem fechadas para conservar a frescura. As bicicletas volteiam como abelhas em torno da colmeia. As raparigas, excitadas mas tímidas, correm de casa em casa, compondo um saiote, retocando o penteado, disfarçando o nervosismo. A expectativa cresce, entre o martelar do chinquilho e o carrocel das bicicletas. Os miúdos passam dedos sonhadores pelo guiador, acariciam o selim, correm à estrada e olham com ansiedade a curva do lagar onde esperam ver surgir o mago, o alquimista, o génio capaz de transformar o barracão de terra batida no salão dourado da fantasia de uma juventude modesta. A emoção atinge o seu ponto mais alto quando o João Canito chega, ofegante, a anunciar: - Já lá vem, vem aí o tocador!

O tocador! Na lonjura da estrada, envolto em poeira, dançando, desengonçado, sobre a bicicleta, com o acordeão às costas, ei-lo que chega. Aos poucos, aquela figura de contornos imprecisos, diluída na distância e no ar quente da tarde, vai ganhando consistência. O chinquilho emudece, os rapazes, com as bicicletas pela mão, abrem alas, a miudagem observa, deslumbrada, a aproximação do homem do acordeão que pedala devagar, até cortar a meta da ansiedade.

Os miúdos rodeiam-no, tocam-lhe nos braços, nas mãos mágicas, no acordeão misterioso, com os seus mil botões, o seu fole colorido.

O tocador desapeia-se em silêncio, encosta a bicicleta e coloca o instrumento sobre o palanque, na penumbra do salão de baile. A notícia já correu a aldeia, Deus seja louvado, o tocador chegou. Os primeiros acordes provocam sorrisos de tranquilidade e certa efervescência radiosa. As raparigas começam a chegar, aos grupinhos, vigiadas por mães severas...

Lá no alto, as velas do moinho continuam a girar ao som do acordeão, o chinquilho adormece, as bicicletas repousam, os miúdos espreitam, fascinados, a tarde cai na aldeia, é dia de festa, o tocador é artista, há baile “à do Baratinha”.

Ao cair da noite, cada um regressa a casa para uma ceia animada. Os candeeiros a petróleo apagam-se cedo, o dia foi de excitação, amanhã há que levantar cedo, recomeça a dura labuta. A festa acabou e ninguém se lembra já do tocador que, cansado e solitário, pedala estrada fora no silêncio da noite, com o acordeão mudo a pesar-lhe nas costas e nas pernas. O carro do Pintassilgo só volta quando o galo do tio Meano anunciar a alvorada...

1985

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 28

as crónicas da Eventos....


Gente do campo*

António Cagica Rapaz

Os chamadores já iam no segundo sono quando a tia Amália se preparava para nos despertar, pelas cinco da manhã. Na realidade, tanto a minha irmã como eu estávamos de olho bem aberto, ansiosos pela alvorada, naquela sublime excitação que nos assaltava sempre que se tratava de abalar para as férias grandes nas Caixas.

Atravessávamos uma Sesimbra vazia, no lusco-fusco silencioso, carregados com as malas, com o coração a palpitar de ansiedade, passo cauteloso mas apressado, como se receássemos ver recusado, no último instante, o visto de saída. No largo da igreja de cima, à porta do “Chico da Cooperativa”, o Pintassilgo esperava por nós para pôr a trabalhar a velha “Panhard” que nos levava penosamente Santana acima para depois contornar o posto da Polícia e se lançar desaustinadamente na recta das Covas da Raposa a caminho do Zambujal onde se começa a descer rumo às Caixas.

Como um náufrago que avista terra, assim nós ficávamos febris quando descíamos na paragem em frente à taberna do Baratinha. Atravessada a estrada, lá estavam o eterno palheiro com a roda de carroça arrimada, e o galo do tio Meano que nos dava as boas-vindas enquanto aguardava o primeiro raio de sol para encher a peitaça e a manhã com o seu cantar triunfal. Era outro mundo, era um deslumbramento, estávamos nas Caixas.

A nossa casinha era modesta e, como as outras, tinha o chão de terra batida, não havia água corrente nem luz eléctrica. Mas havia o poço da Quinta, havia estrelas e uma lua redonda e branca. Tudo era perfeito, foi um tempo muito feliz…

Num raio de vinte metros, contávamos com quatro fornos onde os nossos vizinhos e amigos coziam alternadamente o pão, aquele bendito pão do campo que nos habituámos a considerar um bem precioso e prova tangível da existência de uma entidade superior que regulava a Natureza, concedendo a chuva, acendendo o sol, fertilizando a terra, prodigalizando o trigo, abençoando a farinha.

O Pintassilgo dava meia volta em Alfarim, parava de novo à porta do Baratinha e arrancava rumo a Sesimbra para só regressar ao fim da tarde, quase ao sol-pôr, para trazer o meu pai, vindo do Alfeite, imponente na sua farda branca, para meu contentamento e orgulho. Muitas vezes eu não podia estar à espera dele por me encontrar nos Torrões ou noutro sítio, empenhado nas mil tarefas que partilhava com o Julinho, sob o olhar atento do pai Júlio ou do tio Justino. Era com prazenteiro entusiasmo que começava o dia recolhendo ovos já postos ou enfiando o dedo no orifício adequado das galinhas para detectar a proximidade de nova postura. A seguir, aparelhava e dava de beber à “Boneca”, a mansa mula do tio Justino, mas nunca ousei aproximar-me da escultural “mulata”, a mula preta do tio Júlio que tinha tanto de bela como de brava. Nos Torrões, regávamos os talhões das couves, nabos e cenouras, com a água tirada à picota pelo tio Júlio, antes de brincarmos no ribeiro que desagua na praia do Meco.

Entre outras coisas, amassávamos a comida dos porcos, cavalgávamos o trilho da debulha, vindimávamos e ajudávamos a pisar a uva, juntávamos a camarinheira para aquecer e perfumar o forno e íamos ao moinho trocar um saco de trigo por outro de farinha. Esta era a missão mais nobre e apetecida. Íamos no burro, um à frente, outro ao rabicho e era com curiosidade e receio que nos aproximávamos daquele local misterioso, lá no alto, as velas gigantescas e ameaçadoras, o vento a uivar nos vasos de barro com um furo no fundo e, por fim, o milagre branco da farinha que trazíamos para casa, felizes e orgulhosos.

Ao longo daqueles meses de vida partilhada, eu sentia-me igual ao Julinho, éramos como irmãos, vivíamos ao ritmo do sol, em total intimidade. Os dias nos Torrões constituem uma recordação maravilhosa, era um cantinho do paraíso, com a água puríssima da fonte, um ribeiro de brincar com as rãs enquanto armávamos aos pássaros até a tia Clarisse gritar para irmos comer a sopa de pão, batatas, tomate e ovo. À sexta-feira, voltávamos tarde para casa, a pé, atrás da carroça carregada com a venda que iam levar a Almada ou ao Seixal. Cansados e mal dormidos, abalavam a meio da noite, para uma interminável viagem, por uns magros tostões. Conhecendo bem a dureza da vida no campo, revoltava-me, por vezes, na praça de Sesimbra ao ver algumas pessoas regatearem o preço do que representava tanto sacrifício.

Desse tempo ficou-me uma enorme admiração por esta gente trabalhadora, agarrada a valores, rica de conhecimento e sabedoria, carregada de malícia, temente a Deus e amante da Natureza. Gente que vive a dois passos de Sesimbra e que consegue ser diferente, na maneira de falar, de pensar, de encarar a vida, de agir.

Tenho a felicidade de ter nascido na borda d’água, na rua dos Pescadores, e de ter partilhado a vida das pessoas do que nós chamamos o campo. Tenho agora a sorte de possuir um cantinho na Aiana onde reencontro o cheiro da terra e do pão, o chilrear dos pássaros e a ilusão de que nada mudou. De vez em quando, ainda passa uma velhinha montada num burro que deve ser o último que resta e que me parece o mesmo que nos levava ao moinho, a mim e ao Júlio que mora ali adiante, em frente à escola.

É bom estar na Galé, a ver o mar. Igualmente bom é estarmos com os nossos amigos, a nossa gente que, muitas vezes, é gente do campo…

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* Publicado no nº 32 de Sesimbra Eventos, de Agosto/Setembro de 2004.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 32



O colégio do Costa Marques*

António Cagica Rapaz

O colégio do Costa Marques ficava ali mesmo na minha rua, quase à minha porta diante da qual me habituei a ver passar a Mininha, a Maria Emília, o Fernando Gaspar, a Maria Helena, o David Saloio, o Gil e tantos outros.

Até que um dia chegou a minha vez. Concluídas a 4.ª classe e a admissão aos liceus troquei um abraço apertado com o Luís Papa-Rebuçados (que preferiu a traineira do pai) e abalei para o colégio onde no primeiro ano tive como colegas o Pedro, o Batalha, o Farto, as primas Ana Maria e Maria José Cheis, a Ermelinda, a Elisabeth, entre outros e outras. Os meus dois comparsas Luís Filipe e Penim entraram no ano seguinte. O Colégio era uma pequena casa de uma grande família onde os professores nos tratavam como filhos o que não impedia (até explicava) que o Costa Marques enfiasse aqui e ali a sua bolachada e aplicasse a sua palmatoada rigorosa.

O certo é que a malta estudava, aprendia, sabia e, nos intervalos, disputava renhidas partidas nas traseiras. No período que antecedia os exames, a começar por alturas da festa das Chagas, o estudo principiava às sete e meia com um único intervalo até às dez e meia. À noite, para alguns, era até às tantas. Esta ponta final valia oiro, era a chave do sucesso nos exames, orgulho do dr. Costa Marques e fruto de uma dedicação sem limites e uma competência reconhecida e comprovada. A certa altura o Costa Marques (raramente dizíamos doutor Costa Marques) ensinava, ao mesmo tempo, Francês, Português, História, Geografia e Matemática.

Nem tudo foram rosas, mas o Costa Marques fez muito pela formação de base da nossa juventude. Os professores que tive ficaram-me na memória. Primeiro, claro, o próprio dr. Costa Marques com o seu nariz proeminente, as suas sardas, a sua cara de pau mas uma competência e uma autoridade indiscutíveis.

O Padre João, o inesquecível Padre João Honório Ferreira (que é feito, padrinho do Crisma?), era o nosso professor de Moral e Canto Coral. Para cantar não era tão bom como o seu sucessor Padre Abílio e, quanto à Religião e Moral, nós pouco ligávamos às atribulações dos Judeus e Fariseus. O principal é que o padre João era uma camaradão que irradiava simpatia e nos conquistava a todos.

Com ele fiz a Comunhão Solene e o Crisma ou Confirmação para em seguida ter a honra e o prazer de ler a missa das crianças em português visto nesse tempo ela ser dita em latim. Essa leitura era partilhada com o Pedro e muito nos divertíamos com as rasteiras que nos pregávamos reciprocamente durante a alocução das epístolas, intróitos e evangelhos.

Um dia o Padre João levantou ferro rumo à longínqua Ericeira numa altura em que realizámos um espectáculo teatral com um drama romano intitulado «Mãos Vermelhas» cujo primeiro encenador foi o catedrático Augusto Formiga que abandonou a função porque eu faltei (ou cheguei atrasado a uns ensaios) por causa da televisão que dava os primeiros passos e me retinha no Grémio. Foi-se o Formiga, ficou o «Piolho» João, a peça foi para a frente e, na noite de estreia e homenagem ao Padre João a representação foi um êxito. Eu era o herói da tragédia, jovem varão romano que imaginava ser filho da irmã do João Salgueiro e afinal era filho da bela escrava Anunciação. No final morria no circo despedaçado pelos leões. Nos olhos da assistência havia lágrimas sentidas, rebeldes, incontroláveis. E foi nesse banho de lágrimas que o padre João nos disse adeus o que não nos impediu de levarmos o nosso espectáculo à Ericeira onde demos duas – representações – duas, «Mãos Vermelhas» em duas mãos…

Esclareço que os intérpretes das «Mãos Vermelhas» não pertenciam a qualquer partido…

Figura inconfundível, silhueta inesquecível, saudade de todos nós, o nosso mestre de galanteria e ciências da natureza, Artur Maria da Silva Costa, Chefe das Finanças, orador fluente e colorido, construtor de imagens deliciosas. Dele ficou o célebre intróito «Senhoras minhas e meus senhores» que anunciava cada um dos belos discursos com que nos presenteava. Com a sua imaginação, a sua linguagem pitoresca e um dom inato de comunicar, as aulas de Ciências eram um deslumbramento. Ninguém mais esqueceu o que era um eclipse quando ele nos explicava que a cabeçorra do Farto era a Terra, a do Pedro a Lua e a do Batalha o Sol. E quando saíamos das aulas dele, à boca da noite, caminhávamos com os olhos fixos no firmamento que tão bem nos descrevera. Um homem admirável e um professor fascinante, o Silva Costa. E quando digo o Silva Costa ou o Costa Marques não há qualquer resquício de degradação. A ausência de título é sim sinal de afectividade, familiaridade respeitosa.

O senhor Major tratava todas as moças por Maria. Era folgazão e generoso pois nas aulas de inglês ele fazia tudo por nós, lia, traduzia, formulava perguntas e respostas, só nos restando dizer «Yes, sir».

A dr.ª Maria Amélia Covas foi uma magnífica professora de desenho, física e matemática e muito lhe devo pois sempre fui um nabo em desenho enquanto nas outras duas disciplinas me comportei com correcção mas sem paixão.

O dr. Nabais chegou-nos no 5.º ano e teve a ingrata missão de substituir o mestre Costa Marques em Português e História. Os Lusíadas deram-lhe água pela barba do Adamastor. Mas foi uma belíssima aquisição para a equipa do colégio…

O colégio do Costa Marques foi um ponto de convergência, numa primeira fase sentido como símbolo de privilégio. Muitos dos filhos de pescadores não tinham nesse tempo possibilidades de o frequentar. Outros podiam, como o Luís, mas não quiseram. De lá seguimos quase todos para o Liceu de Setúbal e alguns chegaram à Universidade onde eu nunca teria posto os pés se não desse uns pontapés na bola.

Mas em todos nós ficou uma mística que será mais ou menos sensível, com as aulas, o estudo, os teatros da Mocidade Portuguesa, o desporto, o Café Central, a tasca do Adelino. Todos lemos pela mesma cartilha, pela mão do dr. António da Costa Marques, um homem a quem Sesimbra muito deve, e que, infelizmente, desapareceu demasiado cedo da nossa convivência.

Na minha rua deixaram de passar as batas azuis salpicadas de branco, a campainha do Manuel Elisão emudeceu e os matraquilhos do mestre Adelino (primo do Costa Marques) sentiram a falta da malta do colégio.

O Colégio do Costa Marques é uma página virada, um capítulo sem sequência, um acto acabado. Mas não esquecido…

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* Publicado originalmente na edição de Agosto de 1982 de O Sesimbrense, na rubrica «Contos da Noite Velha».

terça-feira, 9 de novembro de 2010

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 23



Apesar das sucessivas lesões, a atleta continua ávida de vitórias. Enquanto ávida há esperança...
António Cagica Rapaz



[da série Coisas]

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 31


A “ténica” e a pertinácia

António Cagica Rapaz

A paixão pelo futebol exercia-se em dois planos, um virtual, na esfera distante da primeira divisão, outro real, ou seja, a modesta competição regional e bairrista. Por outras palavras, gostar do Benfica não impedia a paixão pelo Desportivo, sofrer agarrado ao transístor não significava desprezo pelo despique renhido dos nossos rapazes contra o Costa da Caparica ou o Ginásio de Cacilhas. Aquela era outra paixão, vivida à distância, através dos jornais, da rádio e, a partir de 1957, da televisão.

O futebol é um encontro, não só para os que jogam mas, igualmente, para os que vibram com ele, os que, naquele tempo, o acompanhavam, que se reuniam nas lojas de companha, no muro, nas tabernas, nos cafés, para falar de bola. Era assim e era apaixonante...

O meu primeiro barbeiro foi o Zé Carapinha, belenense convicto, na minha fase azul, da rua da Fé e do Chico da Cooperativa. Mais tarde, transferi-me para o Central e para a polivalência do mestre Adelino. Para a estudantada do Costa Marques, a taberna do mestre Adelino era ponto de reunião obrigatório para as sandes do Lopes, a consulta de “A Bola”, os matraquilhos e a cavaqueira na barbearia. Enquanto manejava tesoura, pente e navalha, o mestre Adelino rapava a nuca (vulgo caldinho) ao Otto Glória, escanhoava os frangos do Costa Pereira e aparava o bigode do Germano. Os fregueses até cediam a vez para ficarem mais tempo a ouvir as apreciações críticas do mestre, na sua linguagem explicada, medida, esclarecedora, definitiva e de certo recorte teatral. Ah, a “ténica”, a bela “ténica” do mestre Adelino! Era a dimensão familiar, o futebol de pantufas, o sermão de pároco de aldeia para a meia dúzia de fiéis com as quotas em dia.

Paralelamente, ilustrava-se outro mestre, Alves dos Santos, o primeiro e mais prestigiado comentador de rádio e televisão, que trazia o país suspenso das suas palavras nos breves minutos do “Domingo Desportivo” e, sobretudo, da magia das gloriosas e históricas quartas-feiras europeias. Era a dimensão nacional, milhões de ouvintes e telespectadores, um nome, um estilo, sempre a palavra exacta, o rigor, a ciência de um comentário desenhado num português irrepreensível e de cunho muito próprio. Ah, a pertinácia, a bela pertinácia do mestre Alves dos Santos. Na vastidão do seu vocabulário cuidado, vernáculo, escorreito e inconfundível, “pertinácia” ficou como um símbolo de erudição, de originalidade, de requinte literário, figura de estilo muito pessoal que suscitava alguma estranheza, talvez, mas, sobretudo, admiração. Equivalia a assinatura reconhecida.

Não sei se alguma vez os fregueses do mestre Adelino terão estabelecido este paralelo entre os dois comentadores, o da capelinha da barbearia e o da catedral da televisão. Não sei se o mestre Adelino terá, aqui ou ali, aparado as patilhas de Alves dos Santos, agastado por alguma referência menos abonatória para o seu Benfica.

No fundo, eram dois comentadores, cada um com a sua dimensão, a sua audiência, o seu perfil, a sua bagagem, diferentes, mas, ao mesmo tempo, comparáveis, parecidos, no gosto e no talento para a comunicação, no conhecimento, no dom da palavra e na seriedade da opinião. Um à escala da barbearia, outro no plano nacional, mas a mesma paixão, a mesma convicção, a mesma intenção didáctica.

Por vezes imagino como teria sido um diálogo entre eles. Certamente saboroso como foi aquele inesquecível almoço com o António Casa Pia, outro comunicador admirável.

Talvez o mestre Adelino, com um sorriso prazenteiro, tivesse perguntado:

- Então, senhor José, como vamos de pertinácia?

Alves dos Santos teria sorrido, com o seu ar sereno, e respondido, com bonomia:

- Menos mal, mestre Adelino, questão de hábito, por certo, mas também questão de “ténica”...

1995

domingo, 7 de novembro de 2010

TALVEZ POESIA..., 6


Morre-se

António Cagica Rapaz

Morre-se aos poucos
Em cada adeus
Em cada desilusão.
Morre-se devagar
Em cada frustração
Longe do mar
Levados pelo vento.
Morre-se ainda
Em cada desalento
Tristeza infinda.
Morre-se de fugida
De borco no deserto
É o peso da vida
A morte mais perto...

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 27

as crónicas da Eventos...


João Mau*

António Cagica Rapaz

– Vamos para o campo do Desportivo. A discussão teve lugar na sede da Mocidade Portuguesa, ao fim da tarde, e os protagonistas eram o António Júlio, filho do mestre da Música, e o João Mau, ambos graduados da instituição. Porque as palavras tivessem sido insuficientes para pôr termo ao conflito, decidiram passar a vias de facto, serena e quase cordialmente. A sugestão veio do João Mau, e os dois antagonistas, quais duelistas de outro tempo, puseram-se a caminho do campo do Desportivo, lado a lado, sem provocação nem altercações, acompanhados por três ou quatro rapazolas que foram testemunhas. Ordeiramente, puseram-se em tronco nu e lealmente afrontaram-se a murro. O João Mau protegia a cara, deixando o tronco a descoberto, facilidade que o seu opositor aproveitou para lhe socar a peitaça. Sem se descontrolar, o João esperou o momento propício para aplicar um directo que deixou o António Júlio a sangrar do nariz, circunstância que ambos aceitaram como final para a peleja, com honra para as duas partes. Caía a noite quando todos abandonámos o campo do Desportivo que, naquele tempo, cheirava bem a eucalipto…

Sesimbra era terra de seitas, cada uma delas com os seus chefes. A rivalidade entre bandas e bandos provocava frequentes desacatos, combates à pedrada pela conquista de quartéis ou pela ambição de dominar o território. Talvez pela bravura demonstrada, puseram ao João a alcunha de Mau, epíteto que não corresponde em nada à sua natureza temperamental. Certa vez, feito prisioneiro por seita adversa, foi amarrado à porta do cemitério onde ficou noite adentro, transido de frio e de algum temor.

Na Mocidade Portuguesa distinguiu-se pela generosidade, pelo entusiasmo, pela dedicação, pela participação e pelo exemplo, um verdadeiro camarada para todos, em especial os mais novos. No teatro, não brilhou pelo talento, tendo apenas ficado na nossa memória pela sua actuação num papel que lhe ia a matar. O herói da peça chamava-se João e era um homem de quem todos gostavam, sempre pronto a ajudar o próximo. Mas o que o deixará para todo o sempre na história breve do nosso teatrinho de bolso, é o facto de ter proporcionado ao Jonas a célebre e insuperável tirada, no seu papel de moleiro agradecido: “Obrigado, João, és um bom rapaz, arranjaste umas velas para o meu moinho”. Que se cale um tal Villaret com a “Toada de Portalegre” ou o “Mostrengo”. Não insistam na sublime intensidade dramática do “Menino de sua mãe” que jaz morto e apodrece, preso às malhas que o Império tece. Por favor, tragam o Jonas e o João à boca de cena e prestem-lhes a homenagem que merecem…

No início da década de 60, não sei se embriagado pelo canto de algumas sereias louras, o nosso João resolveu abalar à descoberta do mítico paraíso sueco. Juntou-se ao Jorge Martelo e a o outro António Júlio, filho do Domingos barbeiro, e rumaram a norte. Concretizaram um sonho, viveram uma verdadeira aventura, ousaram, partiram. E voltaram…

Nunca assisti a uma aula dada pelo João Chagas, mas sei que gostaria de ter tido um professor assim, daqueles que podem não saber tudo, mas sabem, com toda a certeza, pôr a alma e o coração em cada lição, abrir a janela dos sonhos, da poesia e da imaginação. E também levá-las a pensar, a gostar do que estudam, a amar a terra, o mar, a Natureza, e a ter ideais na vida.

O João foi sempre uma espécie de cavaleiro andante, um D. Quixote inconformado, de lança em riste pela verdade em que acredita, pela honradez e pela sua grei, a sua Sesimbra, o seu mar, as suas raízes, o seu património afectivo e cultural. Sonhador, arrebatado, ingénuo, o João terá porventura sido, numa vida anterior, um daqueles bravos sesimbrenses que se fizeram ao desconhecido, desafiando os Adamastores de má morte.

Nesta quadra em que se festeja o 25 de Abril, apeteceu-me evocar a figura do João António Carapinha Chagas porque é um dos mais puros e autênticos sesimbrenses, daqueles que amam, profunda e desinteressadamente, a sua terra. E porque tem vivido sempre segundo ideais e valores que constituem o que de melhor podemos encontrar no chamado espírito de Abril. O João foi sempre anticonformista, rebelde, incómodo. Foi sempre um homem de Abril, na coerência de uma atitude marcada pelas convicções, coragem, poesia e até certa forma de inocência ou utopia. Conseguiu mesmo um estatuto que não se obtém com exercícios patéticos de elevação em bicos de pés. Por muito que desagrade a alguns, a grande verdade é que o João Mau é uma figura. Isso mesmo, uma figura. Homem de uma cana que põe ao serviço do Clube Naval, ainda arranja tempo para estudar, investigar, escrever, dar espia solta às suas paixões, sempre com o mar nas veias e a terra no coração…

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* Publicado no n.º 30 de Sesimbra Eventos, de Abril/Maio de 2004.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 31


Vazio*

António Cagica Rapaz

Os automóveis são vários como largos são os contos em dinheiro e os outros que passam de boca em ouvido sobre os ditos. O homem chega e as mãos estendem-se, os bonés elevam-se das cabeças em gestos repetidos.

Ninguém se atreve a convidá-lo para a mesa. Deixam-no instalar-se e, então, é ele quem comanda, convidando este ou aquele a tomar lugar a seu lado. É o privilégio dos ricos e a miséria moral de alguns quase pobres que se vendem por um copo e a honra flácida de partilhar uma mesa.

O homem fala lá do alto e bebe de baixo para cima até encher. Quando tem a sua conta, levanta-se, paga tudo ou manda tomar nota, cumprimenta a assistência com um gesto largo e sai. Os sorrisos apagam-se nas suas costas. Sorrisos acendem-se no seu rosto comentando o copo que leva a mais…

A solidão afagada, a companhia comprada, o vazio que não é só dos pobres…

Junho de 1974

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*Publicado no Jornal de Sesimbra, na rubrica “Quando morre a madrugada – Retrato de uma Certa Sesimbra: Aos filhos da noite”.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 22



Zangaram-se, ele deu-lhe com uma mesa na cabeça, e ela morreu.
Foi o móvel do crime...
António Cagica Rapaz



[da série Coisas]

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 30



Charuto
António Cagica Rapaz
“Já cá devia estar!”. Mas não estava porque ninguém adivinhava a que horas o Rafael entraria no café do Alfredo, muito embora os filhos da noite estivessem habituados a vê-lo chegar por volta das duas da manhã. Colocava o livro das quotas sobre a mesa e, mesmo que estivesse muito calor, nunca tirava o boné.

Homem estranho, o noctívago mais acordado de Sesimbra, nunca dorme mais de três horas por noite. Recebia as quotas do Desportivo sem precisar de perguntar o número de sócio, tinha tudo de memória. Não sabe ler manuscritos, só letra de imprensa. O rosto magro, a cor macilenta de quem vive de noite, Charuto era já a alcunha do pai. Come pouco, só bebe cerveja, joga cartas com arte, é hábil de mãos, ágil de pensamento, fino na observação. Podia ter aprendido muito mais do que os números dos sócios, mas nasceu em berço pobre. Este autêntico morcego só morrerá quando se deitar às horas dos outros mortais.

Nas longas noites de Inverno, quando os turistas vão morrer longe, o Alfredo senta-se na nossa mesa e, às cinco da manhã, ainda falta contar muita coisa de um passado que nada tem a ver com a Sesimbra by night. Quando a tempestade se faz ouvir é só nossa, não é para turista ver. E vamos beber a última cerveja no muro, ver as ondas fustigarem a muralha, enchendo-nos de espuma. Aquele mar é nosso, é o mar que o Gilberto cantou. E o Gilberto era um grande amigo do Rafael...

1980