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sexta-feira, 30 de abril de 2010

NOTAS & NOTÍCIAS, 2

Homenagem a António Cagica Rapaz

Em reunião realizada no passado dia 28 de Abril, a Câmara Municipal de Sesimbra deliberou atribuir, a título póstumo, a António Cagica Rapaz a Medalha de Mérito Cultural – Grau Prata (Mérito Cultural), condecoração que será entregue em cerimónia a ter lugar no próximo dia 4 de Maio, pelas 11 horas, no Cine-Teatro João Mota, em Sesimbra. Na mesma reunião, foi ainda deliberado reeditar o livro Noventa e Tal e Contos e editar um outro volume do autor, onde serão compilados escritos dispersos de temática sesimbrense.

CONFRARIA MÍNIMA, 5

as crónicas da Eventos...


Lendas e calendas*

António Cagica Rapaz

Do que me resta de reminiscências da velha gramática latina, estou em crer que o gerúndio neutro plural “agenda” significa “coisas a fazer”. E que “legenda”, fruto da mesma raiz, designa as “coisas a ler”. E que desta última forma verbal deriva a palavra lenda que, etimologicamente, pressupõe uma narrativa escrita.

Naturalmente, não podemos esquecer as múltiplas lendas que a tradição oral propagou através dos tempos, de geração em geração, até alguém as fixar em papiro, pergaminho ou papel, tornando-as, de facto e com total propriedade, coisas para ler e já não apenas para ouvir da boca de trovadores, jograis, menestréis, caminhantes, salteadores de estrada, marinheiros, romeiros ou caravaneiros.

Parece aceitável a ideia de a lenda ter a sua origem e encontrar a sua força na fantasia, na crendice, no temor, na angústia existencial, na busca incessante de explicações para os grandes mistérios da vida e da morte.

E também é sabido que a ciência e o positivismo têm desgastado e esvaziado as lendas antigas que foram sendo arrumadas na prateleira das madurezas, com o homem do saco ao lado da bruxa da Arruda, do monstro do Loch Ness, do abominável homem das neves, do gigante Adamastor e mesmo do Pai Natal.

Entretanto, a poderosa Comunicação Social, e em particular a televisão, expoente máximo da tentacular indústria do entretenimento, procura afanosamente criar heróis, estrelas, símbolos, referências, ídolos que apenas diferem dos modelos antigos porque não duram, são postiços, destroem-se em pouco tempo, como a fita magnética da saudosa “Missão Impossível”.

Hoje, as personagens de lenda são cantores, actores, jogadores de futebol, treinadores, políticos, empresários. Um degrau abaixo, tentando apanhar as migalhas dos banquetes dos famosos, acotovelam-se e engalfinham-se os patéticos clientes dos “Big Brothers” ou das Quintas de celebridades manhosas, a par dos figurantes que recebem uns tostões para bater palmas e rir das piadas alarves de bufões boçais com sotaque do Porto, insulto que o povo nortenho não merece.

Os nossos “populares” sonham com o momento de glória que a passagem na televisão parece proporcionar e lá vão aos concursos e às emissões de conversa mole contar desgraças íntimas ou apenas assistir, na esperança de que uma câmara os foque durante meio segundo.

E a verdade é que poucos resistem a essa vertigem de aparecer na televisão. É espantoso observar como, de cada vez que uma figura pública presta declarações, logo acorrem como moscas varejeiras, meia dúzia de mirones que se colocam estrategicamente nas costas da Excelência opinante e que se presume serem colaboradores, assessores, primos ou camaradas da tropa. Fingem que estão ali por acaso, como se fossem a passar, rodam os pescocinhos para a esquerda e para a direita, assobiam para disfarçar, mas não arredam pé, com um olho no boneco que fala e outro na câmara que os há-de tornar célebres em todo o Portugal continental, Regiões Autónomas e núcleos portugueses espalhados pelo Mundo.

Um programa aparentemente sério (da Rádio Renascença e da RTP2) tem o título inacreditável de “Diga lá, Excelência”. Nem os Parodiantes de Lisboa, no seu mais inspirado fulgor criador de parolice, teriam feito melhor. Mas é o mundo em que vivemos, fabricando excelências, doutores, heróis do mar da palha que nem o burro da TVI se digna mascar.

Neste universo do “faz-de-conta”, a adjectivação é bombástica, gongórica. Qualquer acontecimento é rotulado de histórico, seja ele um simples jogo de futebol ou um resultado eleitoral. O Benfica é o glorioso e os seus jogadores os novos heróis, numa ânsia de exaltação e empolamento que coloca em jogo um ridículo de que os atletas não têm culpa e de que acabam por ser vítimas...

A mesma televisão que fabrica Zés Marias e outros exemplares de estimação, faz abortar qualquer outra tentativa de urdidura de lenda. Desde logo (que linda expressão!), porque os factos e os protagonistas gerados pelo pequeno écran são tantos que nenhum chega a aquecer o lugar na primeira fila da actualidade. Depois, porque a televisão é implacável, mata o mito no ovo, esmaga a lenda assim que ela abre um olho. Nos dias que correm, na aldeia global do directo interactivo e pró-activo, o nosso velho Adamastor jamais seria celebridade. Nem sequer à roda da nau chegaria a voar três vezes, imundo e grosso. Simplesmente porque, mal a sua sombra ameaçasse elevar-se dos confins do oceano, lá teríamos o José Rodrigo dos Santos ou a Manela Moura Guedes a dizer que iríamos ficar a saber tudo sobre o Gigante, as últimas do Mostrengo. Já a seguir!

É assim a câmara, não perdoa, põe a nu, revela tudo, corta pela base qualquer ingénua tentativa de criar uma lendazinha para atrair turista, fomentar o artesanato, criar postos sem trabalho.
Antigamente, catástrofes, golpes de Estado e outros acontecimentos excepcionais só muito mais tarde chegavam (quando chegavam) ao nosso conhecimento, pelos jornais, com vagas e pálidas fotografias a preto e branco. Hoje, temos o Mundo em directo, vinte e quatro horas por dia, em nossas casas. Assistimos a tudo, vemos tudo, sabemos tudo, “em tempo real”, como dizem os nossos entendidos palradores.

Assim sendo, como pode a mais pequena lenda medrar? Lendas só para as calendas gregas, ou seja, nunca mais.

Por isso, contentemo-nos com as que nos restam, tratemos de as conservar em bom estado porque são espécies ameaçadas. Por mim, continuo a acreditar que o “Numância” foi encalhado de propósito para abastecer submarinos pela calada da noite e pouco me interessa averiguar se é ou não verdade. Porque mais importantes do que as certezas históricas ou científicas são a fantasia, o sonho e a poesia.

E alguma ironia mais ou menos irreverente que formos conseguindo preservar...
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*Publicado no n.º 39 de Sesimbra Eventos, de Agosto/Setembro de 2005.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 8




Planeta Reboque*

António Cagica Rapaz

Quem costuma deitar um olho, mesmo distraído, à televisão já viu com certeza o anúncio do Planeta Reebok, com aqueles atletas medonhos, gigantescos, invencíveis, que pisam, esmagam, saltam, destroçam, arrasam, sem limites, sem contemplações, a doer, com pujança, arreganho, sede de vitória e destruição dos infelizes adversários.

Só há lugar para os vencedores, os poderosos, os talentosos, os melhorzinhos lá da rua, lá da cidade, lá do planeta Reebok…

Em Sesimbra vivemos noutro planeta, o planeta REBOQUE. Os romanos tinham os leões e os gladiadores no circo, os cruzados iam castigar os inimigos da fé lá para as bandas do oriente, os descobridores percorreram o mundo à procura de especiarias e sedas raras, os americanos foram à lua e nós em Sesimbra temos o espectáculo recente e palpitante dos carros a reboque. É o último grito em matéria de animação cultural. Há dais disseram-me que há três camiões rebocadores todos eles de donos diferentes. Não verifiquei a autenticidade da informação nem é fundamental saber se é bem assim. Certo é que volta e meia lá vai um a reboque por indicação oportuna da vigilante GNR sempre atenta, em cima da jogada.

E tal como o outro, ou pior ainda, também este planeta REBOQUE é medonho, implacável, sem misericórdia. Com uma pontinha de exagero dizem as más línguas que mal o turista se distrai a perguntar onde são as sentinas e já lhe estão a levar o carro. Essas mesmas línguas venenosas afiançam que os reboques esfregam as mãos que não têm a medir, nem a abanar, antes arregaçam as mangas quando é mostrado pela GNR o cartão vermelho para a operação «alça aí e leva atrás».

Sesimbra foi em tempos terra de macios costumes, poesia e mar rasinho. As saudosas armações da Greta, Burgau, Cova, Roquete, Pai Bernardo, Cozinhadouro, Remexida, tinham em comum a técnica da arte e da presença de uma barca a motor que rebocava os batéis todos, em fila indiana, direitinhos como meninos da colónia a caminho da praia.

A reboque era costume irem também as aiolas puxadas pelas barcas e esta palavra tinha até há pouco uma conotação simpática, evocando apoio, entreajuda, camaradagem. De repente, surge esta inovação com perseguição, espionagem, abordagem legal praticada por corsários modernos com o uniforme da lei e da autoridade instituída.

É o planeta REBOQUE já conhecido há muito noutras áreas, noutros espaços siderais, mas em Sesimbra só há pouco chegou. É a novidade maior a oferecer aos turistas. Há terras onde meninas bonitas oferecem flores e sorrisos, comerciantes fazem descontos, museus de portas abertas, sei lá, mil coisas para seduzir e cativar, desejar boas vindas, acolher e acarinhar. Em Sesimbra é fartar de rir, somos uns brincalhões originais, deixamos o turista estacionar ali no largo das sentinas, levamo-lo no rumo da antiga lota, mostramos-lhe o oceano, as admiráveis obras da doca, o que resta dos passadiços, as guaritas da fortaleza, perguntamos-lhe se já foi ao mar dos Ursos e, entretanto, já dois vigorosos mocetões, ágeis e hábeis agentes nada secretos sacaram do telemóvel e mandaram vir o famigerado rebocador. Pé ante pé, roda ante pneu, levam o carro (enquanto o turista com a mão a servir de pala busca no horizonte o mar da Pedra) e ele aí vai marginal fora que é um vê se te avias. Quando o chamam à realidade, o turista até acha graça, bate com as mãos nas coxas, rebenta os cós das calças a rir, julga que é para os apanhados, mas depois revolta-se e barafusta. Em vão, a lei é dura mas é lei, por mais abusiva ou intolerante que pareça.

Queixava-se um comerciante de um rapazola que todos os dias, mais do que uma vez, passa à porta do seu estabelecimento com uma motorizada barbaramente ruidosa com um escape daqueles cujo barulho só escapa aos ouvidos insensíveis da GNR.

Estranhava ele e estranha toda a gente que, há tantos anos, circulem por aí milhentas motorizadas com escapes ruidosos que incomodam dia e noite, irritam e revoltam.

Ninguém entende por que razão a GNR não multa, não obriga a reparar os tubos de escape. Ninguém compreende a impunidade, a complacência da GNR que faz ouvidos de mercador. Será que não se apercebem? Um tubo de escape transformado vê-se e, sobretudo, ouve-se. Mas mulher honrada não tem ouvidos e a GNR deve ser muito honrada, pelos vistos, não pelos ouvidos.

Dizia-me esse comerciante que gostaria de ter uma explicação para este mistério. Talvez valha a pena ir entrevistar o responsável da GNR, não sei. E o responsável pelo pelouro dos transportes da Câmara não terá algo a dizer? Poluição sonora, com quem é, a quem está entregue esta pasta?

E a quem diz respeito a circulação de motas nas praias do Meco que põem em risco a integridade das pessoas?

Um velho pescador queixava-se de que já não há esplanadas nem largos em Sesimbra. Os cafés e os restaurantes ocupam grande parte de pracetas, becos, passeios e largos em proveito dos comerciantes e com prejuízo para o resto da população.

Com que direito uma só pessoa priva muitos milhares de um largo? A nossa terra está à venda assim aos bocados? Beneficia a Câmara, enche-se o comerciante e prejudica-se assim a esmagadora maioria das pessoas. Com que direito? – Perguntava-me o velho pescador. E eu não consegui explicar-lhe. Será que alguém da Câmara poderá esclarecer? Será que cada sesimbrense pode alugar um bocado da sua rua em frente à sua porta? Ou é preciso ser comerciante? Então e os outros? São empurrados para o meio das ruas onde os carros passam sem descanso enquanto os passeios estão todos ocupados por outros carros.

A nossa terra está invadida, ocupada pelos automóveis e o reboque não é a solução. Abundam as motos de quatro rodas nas praias e em estradas do campo, são as motos de água, os jipes que parecem carros de assalto, é um mundo demoníaco, impiedoso. Maior é o mérito do Aurélio, que teima em andar de bicicleta, esse meio de transporte da idade da pedra que por enquanto não correr risco de ser rebocado pelos Rambos do estacionamento de alto risco.

O tal comerciante está a perder a paciência e receia que estes repetidos reboques afugentem os turistas. Perante a verdadeira agressão das motorizadas acha ele que a melhor solução é o remo. Fiquei aliviado porque acho que o desporto é uma boa forma de canalizar certas tensões, descomprimir, esvaziar, respirar fundo.

E felicitei-o porque o remo é de facto um belo desporto. Ah, o remo, a galhardia, o romantismo, a emoção, o colorido das regatas de Oxford e Cambridge, disputadas palmo a palmo por jovens vigorosos, troncos de estátuas gregas, músculos salientes, ventre espalmado, abdominais de aço, coxas magníficas.

Ah, o remo, os charutos poéticos do tio Abel em passeios à volta do Numância.

Ah, sim, o remo é um hino à luta do homem com o mar, instrumento nobre, símbolo da vontade de ir além, de rasgar horizontes, de triunfar no combate leal contra corrente, ventos e Adamastores de oceanos nem sempre pacíficos.

Ah, o remo, que feliz iniciativa, que bela escolha fez o meu amigo. E por isso me apressei a felicitá-lo e bem confuso fiquei quando depois de lhe ter lançado este belo discurso sobre as virtudes do salutar desporto ele desatou a rir e exclamou:

«– Desporto? Remar? Tu estás mas é maluco! Eu vou é ficar aqui à espera do gajo da motorizada e dou-lhe é com um remo nos cornos!!»

É assim, vá lá a gente armar em poeta. Bem tentei acalmá-lo mas só pensa no remo, meteu-se-lhe aquilo nos…, na cabeça, que querem vocês?

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*Publicado originalmente na edição de Julho de 1994 de O Sesimbrense.

terça-feira, 27 de abril de 2010

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 2



Na tropa tinha de fazer tudo. Era o cabo dos trabalhos...
António Cagica Rapaz


[da série Coisas]

segunda-feira, 26 de abril de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 7




Vendaval antigo

António Cagica Rapaz

O vento corre do Caneiro à doca, mete os dedos pelo mar dentro, atira as vagas contra a Fortaleza, leva a espuma ao Castelo e assobia na rua dos Pescadores. Nas ruas vazias ouve-se o mar, cheira a mar, as pessoas fogem da chuva, correm de porta em porta, olhos no chão, receando olhar de frente o Inverno que sempre acaba por chegar. O mar pega-se ao céu numa aliança que o farol procura romper. Na doca os barcos dão-se as mãos, encolhem-se, encostam-se uns aos outros, com medo das vagas. Ao longo da marginal, capas de oleado dirigem-se para o porto de abrigo, e a luz molhada dos candeeiros reflecte-se, mortiça, nas vestes que protegem os pescadores que vão deitar um olho aos barcos que a tempestade ameaça, como um pai que não se deita sem ir ver se o filho está bem tapado…

A noite avança por entre as vagas. O Alfredo acabou de jantar e entra a correr, todo encharcado. A casa está cheia, só há um turista que costuma vir todos os anos, no Inverno. Ele deixa de boa vontade o Verão aos outros porque só no Inverno se pode conhecer a verdadeira Sesimbra. E lá está, sozinho, ouvindo conversas de que não entende uma palavra, sorri, saboreia religiosamente o vinho tinto e sente-se em casa. As outras mesas são ocupadas por pescadores, os mesmos que frequentavam a taberna da tia Sabina onde jogavam às cartas ou às malhas, entre dois copos que ajudavam a esperar o fim do vendaval. O estrangeiro olha, bebe, sorrindo sempre. O vinho tem um longínquo sabor a maresia. Regala-se com aquela companha e quem sabe se, a meio da garrafa, ele não se verá já a encher bóias ou a largar aparelho no mar dos Ursos. O Charuto oferece um copo ao Domingos que acaba de chegar do cinema, os filhos da noite começam a dar à costa…

O Deodato agita-se nas sandes mistas, o resto da vila já dorme, como o Verão que o vendaval levou para longe. Chega o Ernesto, aparece o Valdemar que vem com o Zé Manel. Às quatro da manhã quase todos se foram, o Alfredo vem sentar-se na nossa mesa, o Chagas não deve tardar. O Rafael fala da Sopa, do pesadelo de invernos distantes, da miséria que todos fingem ter esquecido. O tempo pára, o tempo recua como as vagas que embatem na muralha. O Hotel Espadarte perde-se na cova funda, o vento assobia por entre as folhas de zinco da velha Sopa. Ao longe parece ouvir-se a voz do Gilberto e nos olhos do Rafael há um brilho diferente. Quando o Alfredo e o Rafael se dirigem para a Vila Pinto, o mar ruge com mais força. O Rafael pára e volta-se para olhar o mar, como para lhe perguntar o que ele quer. As lágrimas sabem-lhe a mar…

1982

sexta-feira, 23 de abril de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 4

as crónicas da Eventos...


Carta ao pai da tal*

António Cagica Rapaz

Espero que esta o vá encontrar de boa saúde que eu cá vou indo menos mal grassas adeus. Primeiro pesso imença desculpa ao senhor Fernando pela minha ozadia e pelas calinadas porque não concigo escrever direito por linhas porcas ou lá como se costuma dizer. Mas como o outro que diz quem não risca não petisca cá vai e seja o que Deus quizer.

Os meus amigos dizem que eu sou assim a modos que prafrentex mas olhe o senhor Fernando que me vi à rasca pra me resolver a escrever. O senhor Fernando deve saber quem eu sou, pode é não ligar o nome à peçoa ou se calhar é pouco previsto como o meu pai que andou da escola com o senhor Fernando. Ele chama-se Jaquim e tinha a alcunha do Gasosa por causa do gargolide que fazia dentro dágua quando andava ao banho. Tá a ver, não tá, senhor Fernando, fazia bolinhas, não lhe dava com as mãos. E ficou o Gasosa.

Não leve a mal eu lembrar as partes do meu pai que é como quem diz quem sai aos seus não regenera ou lá como se diz que eu nunca fui grande coisa em ditados dava muitos erros. Mas vamos ó que intressa.

Talvez o senhor Fernando já tenha reparado em mim eu costumo estar na esplanada onde você costuma ir e fico as mais das vezes centado na mesa ó pé da parede da junta. Ao domingo trago sempre não falha um fato de treino incarnado com riscas azuis à Benfica que eu sei que o senhor Fernando é do Benfica também.

Não é pra me gabar mas o fato de treino fica-me bem tem cá uma pinta mas como ia a dizer senhor Fernando eu costumo ficar ali por causa da sua filha mais nova a Tânia Vaneça que eu estou apaixonado por ela.

Prontos é assim não vale a pena estar com mais conversa eu sou franco senhor Fernando estou apaixonado pela Tânia Vaneça, prontos. O pior é que não concigo falar com ela, sou acanhado nestas coisas. Os meus amigos já toparam tudo e andam sempre a mangar comigo atão já falastes ca tal, ainda andas atrás da tal, já engatastes a tal, tá a preceber senhor Fernando.

Por acaso deste dia, olhe foi no dia do Benfica – Passos de Ferreira que deu na telvisão, estive quase vai não vai para lhe oferecer uma aveleda. Quando o Zóvique marcou o golo estive mesmo quase porque eu já reparei que o senhor Fernando é como eu gosta de uma aveleda para arrebater. Às vezes também amando abaixo um isquezinho um xivas é dos bons e dos mais caros.

Sim porque eu senhor Fernando não é para me gabar mas tenho-me safo bem já ganhei umas croas boas e acho que é altura de construir famila afundar um lar como se costuma dizer não é. Há por aí muita rapariga geitosa mas eu engrassei com a Tânia Vaneça prontos e dali não tiro o sentido. Às vezes vou às descotecas e até tenho uma garrafa de xivas em todas à minha orde e olho pra ela a dançar com os outros que eu não me afoito a pedir-lhe. Custa-me um bucado quando toca os slôs aquelas músicas mais paradas. A gente sabe como é esta malta os de fora atão são uns abuzadores mas ela não dá preferença a nenhum dança com todos. Eu estranhava que ela dançaçe assim um bucado encustada mas disse-me o disco joca que é mesmo assim é da música tem de ser encustado senão não dá sai do ritmo, o disco joca sabe destas coisas.

E depois assim como assim digo cá pra mim que se ela tiver já batida sabe mais e pode esculher melhor, digo eu não sei. Salvo seja até já ouvi dizer que certas mulheres da vida quando casam até são as melhores, salvo seja, não é senhor Fernando.

Pois como ia dizendo senhor Fernando a vida tem-me corrido bem.

Com o que ganhei na barca comprei uma butique de artezanate e recordassões e tou na maior.
Vou muitas vezes lá fora comprar coisas e há tempos arranjei um bescate que tem dado massa como milho e não custa nada. Isto fica só entre a gente que o rapaz pediu-me segrede. Mas como se calhar qualquer dia já somos famila vou-le contar.

O Libório, aquele da padeiria, aqui á tempos pediu-me se eu não me importava de lhe trazer uma incomenda de Badajoz, coisa pouca, um quilo se tanto. Disse-me que era uma farinha especial que dá bom gosto ao pão e cá não há. Como ele pagou bem o geito fui lá mais vezes e deste dia desconfiei da fartura e abri o pacote. Era mesmo farinha por sinal bem branquinha mas palpita-me que aquilo não é só para o pão. Vai daí afoitei-me e pedi mais dinheiro. O gajo ficou à rasca disse logo é pá fala baixo, toma lá se precisares mais avisa. Olhe senhor Fernando aquilo é uma mina já comprei um jipe e aparelhages esterofónicas tenho três. Cá pra mim que não sou parvo aquela farinha é algum produto milagrozo que o gajo vende bem vendido a gajos de certa idade que já não têm… precebe senhor Fernando… que já não chegam lá. Já tenho ouvido falar em coisas assim e há por aí malta entradota cheia de massa que quer gozar a vida e já não consegue. Cá pra mim é isso e o negócio tá a dar. O Libório tá cheio dele e não é a vender carcassas e bolinhos que se ganha tanto cacau. Mas eu como não sou parvo não quero complicassões só trago a farinha e vou sacando o meu. Como vê senhor Fernando sou um home trabalhador, desenrascado e tenho com que me governar. Por isso pesso-lhe o favor de apalpar o terreno se achar que dou um bom genro. No domingo não falha tou lá caído outra vez com o meu fatinho de treino que é um mimo. Vou encomendar logo uma aveleda para o senhor Fernando que pago eu. Se o senhor Fernando achar que tenho uma chansse é só fazer sinal e eu vou pra sua mesa.

Obrigado senhor Fernando e olhe que não se há-de arrepender conte comigo e se precisar arranjo-lhe um bocadinho de farinha da boa, da tal. Os amigos são prás ocaziões, não é, senhor Fernando.

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*Publicado no n.º 23 de Sesimbra Eventos, de Fevereiro/Março de 2003.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 7



Pedra Alta: foto tirada do blogue Sesimbra.


Se calhar…*

António Cagica Rapaz

Naquele tempo o Belenenses procurava avidamente um segundo título nacional e foi buscar três reforços à Argentina. Chamavam-se Perez, Di Pace e Benitez, três magníficos avançados que vieram juntar-se ao fabuloso Lucas Matateu, sob o comando do chileno Fernando Riera. Dizia-se que o melhor dos três era o Benitez que teve muito pouca sorte, vítima do talento que possuía e da selvajaria dos adversários. Primeiro foi um Gato, defesa do Benfica, e depois foi Pinto Vieira, do Braga, que lhe partiu a perna de tal forma que o pobre Benitez ficou incapacitado para o futebol e para a vida inteira.

Recordo-me da enorme bigodaça de Benitez que regressou triste e amargurado à sua Argentina, nome da filha do Matateu, curiosidade saudosista.

Passava-se isto no ano da graça de 1953 ou 54. E Graça era e é o nome do dono de outro imponente bigode parecido com o do Benitez. Talvez por isso eu os associei, o Benitez e o Graça, de sua graça Jacinto, mais conhecido por Jacinto Maneta, enquanto o Benitez ficou coxo.

O Jacinto tinha o braço esquerdo um tanto chegado ao corpo, sem que tal lhe diminuísse o engenho nem a destreza com que manobrava o pincel.

E na areia lisinha da doca o belo Jacinto dava toques cheios de habilidade, pureza técnica e suavidade artística.

Da vida ele tinha e tem uma concepção muito sua, original e filosófica. Poucos terão como ele saboreado as delícias da nossa terra, o sol, o mar, a praia, o cântico das gaivotas, o balanceamento indolente dos barcos na doca, o tempo que se escoa languidamente, a vaga sonolenta atrás da qual outra virá, o Inverno que sempre acaba por trazer pela mão a Primavera, amanhã também é dia…

Os nossos contactos foram espaçados, mas tive sempre a sensação de que o Jacinto terá sido das pessoas que conheço uma das que melhor sabe saborear a vida. Filósofo à sua maneira o Jacinto é especialista do trocadilho, da frase sibilina, da insinuação subentendida. Por vezes tinha dificuldade em saber do que me falava, a quem se referia naquela sua linguagem hermética e codificada.

Naquele tempo eu tinha 17 anos acabadinhos de fazer e sonhava com futebóis mais além. Bruxo, o Jacinto surpreendeu-me quando se propôs levar-me a treinar ao Sporting porque conhecia o Juca, na altura técnico dos juniores.

Comigo foi o Fidalgo e foi a primeira vez que andámos de metropolitano. Creio que foi o Jacinto que pagou, já não sei bem. Só sei que teve essa iniciativa generosa quando afinal não éramos sequer amigos chegados.

Foi um gesto bonito e não esqueci…

Propunha-se o Sporting pagar-me treinos, prémios de jogos, os estudos e a pensão. Era tentador e hesitei bastante. E lembro-me de ter dormido no Lar do Sporting na Rua do Passadiço, no quarto de um basquetebolista, Garranha ou Valente, não sei bem. E vejo-me ainda, sentado num banco, nos Restauradores, olhando à minha volta, envolto no manto da noite de Lisboa. E tive medo, medo de Lisboa, medo de não triunfar, incapaz de cortar amarras, perdido, longe de Sesimbra. Nessa noite olhei à minha volta e Lisboa pareceu-me o fim do mundo, senti-me pequenino, à deriva, longe do Central, do Pinto e Pinto, da Pedra Alta, da taberna do mestre Adelino…

E fiquei em Sesimbra, mais um ano, com o velho Carlos Marques, o Leão, o Fidalgo, o Arlindo, o Áureo e os outros, em casa, em família.

Um ano depois acabei por partir para Coimbra. Depois vim para Lisboa, estive no Porto na tropa e por fim estou em Paris há 19 anos.

A percepção que nós temos das pessoas e da nossa terra tem muito a ver com o tempo e a distância.

Ao longo da nossa vida há períodos que nos marcam mais, em que somos mais permeáveis, mais receptivos. Ficamos marcados por imagens que, anos depois, talvez não nos impressionassem. Nós mudamos como a nossa terra muda embora cada um de nós conserve em si imagens ideais de um paraíso perdido. A nossa terra vai sofrendo alterações, transformações, renovações, embelezamentos, deformações enquanto nós vamos envelhecendo. Mas continuamos a fingir que acreditamos que nada ou pouco mudou, que Sesimbra é a mesma e que estamos bem conservados.

No fundo não há uma Sesimbra, há milhares de Sesimbras, uma para cada um de nós. Já o meu pai (e com certeza o pai dele, o tio Zé da Angélica) se queixava da agitação que perturbava a vida pachorrenta da nossa terra, nos tempos idílicos dos charutos na praia do tio Abel, do Numância bem composto, das peregrinações à Arrábida, das caldeiradas monumentais que terminavam com as histórias rocambolescas narradas pelo Antero do Pão. Era a idade de ouro, era Sesimbra longe de Lisboa, fora do mundo, a leste do paraíso…

Cada geração teve a sua Sesimbra, cada geração perdeu a sua Sesimbra mas ficou agarrada a uma recordação ideal, poetizada, retocada pela necessidade que todos temos de acreditar em alguma coisa, de nos agarrarmos a certas coisas.

Por isso continuamos a ir atrás da procissão e a sentir uma emoção intensa quando vemos o Senhor das Chagas ao ritmo compassado dos tambores dos meninos tristes da fragata D. Fernando.

Nesse instante preciso, os nossos olhos enchem-se de lágrimas, o nosso coração bate com mais força e sentimo-nos de novo crianças impressionadas pela máscara dolorosa do Senhor. E revivemos a ansiedade da chegada do primeiro camião com o material do carrossel oito, os carrinhos e as farturas, as ruas cobertas de pétalas, as colchas nas janelas, a melancolia da vila deserta no fim da procissão.

Sesimbra hoje não tem passeios, só carros a cada porta, esplanadas que devoram os largos, boutiques e restaurantes, motorizadas, ruído, agitação, praia assassinada, o Espadarte a agonizar, a droga a cada esquina…

E esta Sesimbra é bela, cheia de vida, de juventude, moderna, com os excessos próprios da mocidade. E será certamente recordada com saudade pelos jovens de hoje que não conheceram as armações, que nunca viram as barcas fundeadas de cada lado da Fortaleza, que nunca ouviram o chui na lota, que nunca presenciaram a azáfama das chatas dos almocreves, dos burros e dos curiosos num fim de tarde com o peixe estendido na areia e a noite a cair serenamente por trás do farol.

É esta a Sesimbra deles e é tão bela como a nossa, a que cada um de nós conserva em si.

Talvez possamos sentir e amar Sesimbra com mais intensidade quando vivemos longe porque dela só vemos o que nos convém, só guardamos o melhor. E se calhar amamos uma Sesimbra que já não existe se é que alguma vez existiu a não ser na nossa imaginação. A mulher que amamos é a mais bela do mundo. Para nós…

Se calhar não foi uma boa ideia terem desfigurado a Pedra Alta colocando nela uma placa cuja inscrição ninguém consegue ler e que estaria melhor cá em cima no muro, mais acessível e com a vantagem de não ter manchado a nossa Pedra. Por outro lado uma placa é como um carimbo que torna oficial, coloca o selo da realidade, mata a poesia, o sonho e a lenda.

Se calhar o erro é pensarmos que só nós possuímos bom gosto e bom senso. Não sei, se calhar o melhor é esperarmos que o verão passe, sentarmo-nos ao fim da tarde nos degraus, lá em cima a contemplar o mar que é o único que não muda, o único que é fiel, que volta em cada maré, beijando os pés à nossa terra, levando e trazendo sonhos.

A Sesimbra que eu trazia em mim naquela noite nos Restauradores é a mesma que eu vejo de Paris, imagino-a, retoco-a, amarro-a na doca da minha saudade, coloco-a no cenário do palco da Vila Amália.

Depois faço desfilar as personagens deste universo que vou recriando, vamos todos de braço dado, de rua em rua enfeitada. Que importa se já não somos assim, se Sesimbra mudou como nós que estamos acabados. Fazemos de conta e vamos andando. O Jacinto continua com ar de profeta e não sei se o Benitez era o melhor dos três argentinos. Sei que o Belenenses não voltou a ser campeão, que o Matateu está no Canadá e que a Pedra Alta perdeu a virgindade.

Mas Sesimbra será Sesimbra, um para cada um de nós, e a Pedra Alta, com ou sem placa, será sempre a Pedra Alta. Porque precisamos de lenda, precisamos de poesia e, sobretudo, de sonho…

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* Publicado originalmente na edição de Junho de 1993 de O Sesimbrense.

terça-feira, 20 de abril de 2010

DEVANEIOS & TROCADILHOS, 1


Morreu sem se despedir. Só disse a Deus...
António Cagica Rapaz

[da série Coisas]

segunda-feira, 19 de abril de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 6




Boa noite, ó mestre!

António Cagica Rapaz

Quando o sol se põe para lá do farol, deixando no céu tons de púrpura, quando os pescadores, de saco aviado, se encaminham lentamente para a doca, a noite turística de luzes retocadas instala-se na esplanada da Marisqueira. É o intróito, convém chegar cedo para ocupar um lugar estratégico, com a bica e uma Aveleda, o maço de cigarros e o isqueiro, armas da emboscada que começa a ser montada.

Em frente, para lá das bombas da Sacor, estende-se o mar, enrugado como a pele do tio Vicente Faneca. As traineiras já lá vão, sombras que correm sobre as águas, luzes que tremulam no alto dos mastros. Nostálgico, o jovem pescador procura com os olhos a esplanada da Marisqueira onde já foram servidas mais bicas e mais isqueiros foram colocados com negligente ostentação sobre as mesas de ferro como âncora que se lança ao fundo. O lugar está marcado, a noite ainda mal começou, tudo pode acontecer…

- Coffee, please, and two brandies – começa a chegar o material, todos atentos à jogada. Aí está o Capitão John que não é capitão nem John, sorrisos, saudações, vai um copo? Boa noite, ó mestre! A bordo da traineira vai um turista estrangeiro encantado com a perspectiva da pesca e que tomou dois comprimidos contra o enjoo. A mulher ficou em terra, não tomou comprimidos mas já vai no terceiro whisky, na esplanada. Ela não enjoa…

1980

domingo, 18 de abril de 2010

TALVEZ POESIA..., 2


Quisera

António Cagica Rapaz

Quisera ser poeta
E não forjar versos
Que se amontoam,
Dispersos,
Sem a centelha do génio,
Que a indiferença esqueceu.
Quisera ser pintor
E não sujar telas,
Forçando o próprio luar
A um brilho sem esplendor.
Quisera ser asceta,
Músico, escultor.
Quisera ser poeta,
Mas não sou.
E não tenho o teu amor…


sexta-feira, 16 de abril de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 3

as crónicas da Eventos...



Arrábida, aldeia de irmãos*

António Cagica Rapaz

Encolhida entre as penedias abruptas do Caneiro e a luz protectora mas confinante do farol, Sesimbra sufocava de ansiedade e sonhava com a aventura a que o mar convidava.

No horizonte recortava-se a costa alentejana, América inacessível, Índias impensáveis para os nossos antepassados que contemplavam o oceano infinito entre dois balanços das suas frágeis embarcações.

Por terra, a Alfarrobeira era o limite do real conhecido e dominado. Para além da curva, era o risco de uma aventura que passava pelo Castelo, território de gente com outro falar, mais arrastado, homens vergados sobre a terra, vivendo com animais à beira, hordas que desciam à borda d’água, no pino do Verão, de alcofa na mão, demandando a armação...

Mas a negridão do Inverno também chegava a obrigar homens, mulheres e crianças do nosso burgo a subir a serra, a bater à porta dessa gente de falar estranho, pedindo uma côdea de pão, alguma fruta, naco de toucinho ou um fio de azeite. Era a fome, a miséria de dias sem fim em que o mar negava o sustento, em que a vida ficava presa a uma enfiada de carapaus secos e o estômago era enganado com magras sopas de café.

O homem sofria, rezava e sonhava. E acabou por se fazer ao mar. Cautelosamente, junto à costa, palmo a palmo, a curtas braças, Calhau a Calhau, dobrou o Cabo, enfrentou tormentas, até chegar à Arrábida, ao paraíso, como Ulisses chegou a Ítaca.

E desde então compreendeu que não está isolado e que ali fica outra terra prometida, na imensidão da serra, no deslumbramento da vegetação, na embriaguez dos odores, no êxtase do silêncio, presépio que os deuses quiseram desenhar, moldar, construir, aqui tão perto.

Com o tempo, e embora Sesimbra fosse a nossa bela terra, a verdade é que o apelo se revelou, para sucessivas gerações, irresistível. A magia, o fascínio da Arrábida era como um cântico de sereias, melodia de fim de Verão, sortilégio de Setembro quando certas famílias encetavam a sua peregrinação, lenta e preguiçosa, gozando o deleite do prenúncio do Outono, na paz e no encantamento do Portinho. Entre tufos de alfazema, alecrim e tomilho, era um tempo de recolhimento místico só quebrado pela festança profana de caldeiradas memoráveis. Sentimentos, odores e sabores de fraternidade, na quietude de um cenário idílico, tradição saudosa de caminhantes devotos ante a senhora del Carmen. Arrábida de poetas, comunhão perfeita com uma natureza que nos deslumbra e comove, que nos une na contemplação da beleza suprema. Arrábida, verdadeira aldeia de irmãos, onde sempre voltamos, nessa busca incessante do tal paraíso perdido. Como alguns seguem a estrela do pastor, como outros vão a Meca...

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*Publicado no n.º 29 de Sesimbra Eventos, de Fevereiro/Março de 2004.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 6

Zé Tucha: foto tirada do blogue Sesimbra


No fundo*

António Cagica Rapaz

Há tempos, numa gloriosa manhã de domingo, bateram-nos à porta, na Aiana, dois mensageiros de Jeová. Chovera durante toda a semana e aquele sol radioso, o perfume da terra molhada, o ar puríssimo e a luminosidade do céu lavado pela chuva benfazeja, tudo isso fazia daquele domingo uma prova suficiente da existência de Deus, de Jeová, de Maomé ou de Buda, à escolha, segunda as crenças.

Não calhou ser eu a ir à porta, e abstive-me de intervir na ladainha dos pacientes e pertinazes pregadores, tendo apenas retido uma frase que me deixou pensativo. Fiquei a saber que, para as testemunhas de Jeová, a alma morre com o corpo. Admito que haja alguma ambiguidade entre os conceitos de alma e espírito, que conviria aprofundar a reflexão, mas não desejei esclarecer o assunto e apenas aproveito o mote para divagação.

Esta convicção dos seguidores de Jeová (a menos de outra interpretação) parece encerrar uma mensagem tenebrosa, e deixa-me alguma curiosidade quanto à maneira como encaixarão esta ideia num quadro positivo de vida. Seria certamente interessante ouvir a argumentação que utilizam para conseguirem transmitir esperança e optimismo, encontrar sentido para uma vida sem prolongamento para além da morte.

Se, de facto, a alma morre com o corpo, o nosso horizonte é curto, o fim do filme da nossa vida não traz qualquer surpresa nem a menor expectativa, muito menos uma esperançazinha de eternidade. Como todos sabemos, estamos condenados a morrer, é mesmo a única certeza que a vida nos dá. Ora, se uma religião nos diz que a morte é o fim, do físico e do espiritual, que sentido poderemos encontrar para a vida?

Este tipo de congeminações poderia tornar-nos pessimistas e macambúzios, pelo que é aconselhável certa prudência na aproximação a assuntos desta natureza morta.

Há tempos, deparei na praça (palco privilegiado de todos os encontros) com o José Embaixador, figura notável da nossa terra, bombeiro, mercador de matacões, bolos e pastéis, e também patriarca dos servidores de Jeová.

Confesso que nunca vislumbrara no nosso Zé Tucha preocupações de ordem espiritual, mas admito perfeitamente que em qualquer altura possamos ser levados por uma onda de misticismo. Cada um tem o direito de acreditar, pregar ou prestar culto segundo as suas convicções, desde que respeite o seu próximo a quem deve reconhecer igual liberdade de pensamento e de expressão. Apesar de tocado pela graça de Jeová, o Zé Tucha não perdeu a outra graça, a sua verve malandra, o bom humor que sempre lhe conhecemos. E disso me apercebi no nosso diálogo na praça. Na sua linguagem pitoresca e metafórica, lá me foi dando conta da sua saúde que já não é o que foi, tendo sido obrigado a usar um “pace maker” para manter o coração a funcionar em bom ritmo. Mas não se ficam por aí os seus constrangimentos. Mais inconformado ainda me pareceu quando rematou, em confidência e desabafo: “Olha, o pior é que já nem vou à tona”.

Habituado às suas excêntricas figuras de retórica, deduzi que já não se sentisse em forma, à tona de água, menos vigoroso, com menos destreza, enfim, algo parecido. Porém o seu sorriso maroto deixou-me, mais tarde, a impressão de ter ouvido mal…

Seja como for, a brejeirice lendária do Zé Tucha mostra que não está muito preocupado com a dicotomia alma-espírito e que conserva uma perspectiva optimista e hedonista da vida.

Aqui chegados, coloca-se-me a angustiante e obsidiante dúvida sobre o rumo a dar a este escrito, hesitante que estou entre a tonalidade mística e a toada maliciosa que o Zé Tucha, impenitente inveterado, me segreda ao ouvido, a mim, frágil criatura impoluta, menino de coro e decoro, nada dado a essas maléficas pantominices. Ainda sinto na pele a valente reprimenda da minha boa amiga Doutora Auzenda que não gostou nada das minhas divagações marotas inspiradas pelo despudorado Camilo José Cela. Em verdade, não estou arrependido, mas que isto fique apenas entre nós…

Voltando às minhas dúvidas quanto ao tom a dar a esta narrativa, pergunto-me se vale a pena abordar assuntos graves. Recentemente escrevi duas crónicas sobre coisas essenciais como são a vida e a morte, as linhas da mão, a força do destino, tudo assente em convicções e experiências pessoais.

E, afinal, para quê? Para encontra a habitual ausência de reacções, isto é, para ficar com a sensação de que é indiferente escrever sobre coisas sérias ou alinhavar escritos triviais. Há uns três anos, contei** de que maneira consegui, em 1971, no Campo de Tiro da Serra da Carregueira, restituir às suas famílias alguns rapazes destinados à guerra colonial. No fundo, talvez não o tenha feito tanto por ideais políticos, como por sentir que era uma guerra absurda, e porque assim ditavam a minha consciência e a minha dignidade. Posto isto, naquele período de guerra, era muito arriscado para mim contornar as regras, furar as malhas da lei, ainda que iníqua e cínica.

A prisão era «a recompensa» para o meu atrevimento, se a falsificação fosse detectada. E não era difícil, bastava que alguém, por acaso ou por curiosidade, tivesse comparado com o original os processos aldrabados que enviei. Afinal, podia ter encolhido os ombros e deixado andar, como fazia, com egoísmo e desprezo, um tenente do quartel da Amadora, um tal Luís.

Mas achei que devia tentar. E consegui. Só conheço um dos rapazes que pude ajudar. É das Caixas, chama-se Bernardino, e a mãe, a tia Líbia, agradeceu-me, com muita emoção e um coelho…

Nunca reclamei medalhas nem cartão do clube dos lutadores anti-fascistas que saíram, apressadamente, das tocas logo no dia 26 de Abril. Apenas observei que esta narrativa não despertou qualquer curiosidade, ninguém achou útil aprofundar a questão, apesar de não ter sido propriamente uma banalidade o que se passou na Carregueira. A maioria desses abnegados resistentes nunca foi além da conspiração de café, à volta da bica e do bagaço, sem jamais ter elevado a voz ou tido um gesto que se visse. Não me considero herói, mas não teria sido de mais se alguém tivesse condescendido em me dirigir uma palavra ou um sorriso de simpatia, procurado, ao menos, saber se tinha sido verdade, se não seria gabarolice ou mistificação. Mas não, nada. Foi como se aquela crónica fosse apenas ficção pura e delirante como “O molho à espanhola” que tratava de uma louca invasão para repor os irmãos Filipes no poder. No fundo, tanto faz escrever sobre a vida para além da morte como sobre a falta de cavala no mar dos Ursos. Mas, ao fazer esta observação, não estou a manifestar surpresa nem estranheza, muito menos decepção.

Gosto de brincar, divirto-me com algumas pinceladas irreverentes, apraz-me misturar melancolia, sonho e poesia, mas não sou ingénuo nem lírico.

Há muito que me habituei a esta relação de sentido (quase) único, marcadamente direccional que existe entre quem escreve e quem lê, embora isso não me impeça de sublinhar que seria desejável que houvesse diálogo, mais intervenção dos leitores, escrevendo para o nosso jornal, tornando-o participado, mais vivo e rico.

Não faz sentido e é frustrante pensar-se que de um lado estão os que escrevem e do outro os que lêem. Ao fazermos o jornal, estendemos a mão, damos um passo, lançamos um olhar, vamos ao vosso encontro. E gostaríamos de vos ver, de vos ouvir, de vos ler.

Só assim o nosso jornal cumprirá a sua missão de nos juntar a todos, leitores e escribas, à volta da mesma causa que é a nossa terra, nas suas múltiplas facetas, as pessoas, as coisas, a economia, o ambiente, a segurança, a pesca, o turismo, a droga, a educação, etc.

As pessoas, de maneira geral, só escrevem para o jornal quando se sentem atacadas, nos seus interesses ou na sua dignidade. É pena, porque a certa altura pode haver o risco de desalento, de desmotivação por parte de quem se sinta cansado de erguer a voz em defesa do nosso mar e dos nossos pescadores, por exemplo. Por alguma razão, recentemente, o Pedro Filipe pedia aos sesimbrenses para acordarem. Um dos sinais desse adormecimento é a posição de alheamento e comodismo, sem se manifestarem, sem se pronunciarem, contra ou em apoio, sobre as causas que o jornal defende com carolice, com bairrismo, certamente, mas também com conhecimento e noção de responsabilidade. No fundo, um jornal é um meio de comunicação e esta faz-se nos dois sentidos.

Por mim, apenas observo, registo, não me queixo, não vale a pena, tudo isto mais não é do que pretexto para a nossa cavaqueira mensal. Afinal, o que escrevo quase sempre se situa na esfera do acessório. Mesmo quando falo da vida e da morte. Ou da guerra que, muitas vezes, nos leva de uma à outra…

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*Publicado originalmente na edição de Maio de 1999 de O Sesimbrense.
** [nota do editor] Na crónica Superveniente, publicada na edição de Dezembro de 1995 de O Sesimbrense. Com o mesmo título, e versando o mesmo assunto, publicou António Cagica Rapaz uma narrativa no livro Janela com Escritos (Sete Caminhos, 2006).

segunda-feira, 12 de abril de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 5




O barco

António Cagica Rapaz

A estibordo o campo de pessegueiros, o recorte dos castanheiros, o declive do ribeiro seco, o pinhal e os caminhos que vão dar ao mar. A bombordo, a estrada estreita, recta esticada à beira da vinha cansada, os cães acorrentados, mais assustados que agressivos, prontos a ladrar ao menor sinal de presença humana.

A proa é cortante, ângulo muito agudo, capaz de sulcar a terra em travessias silenciosas, em noites de lua encoberta por nuvens que o mar carregou de sombras e mistério. A amurada de bombordo acompanha a estrada, desliza-lhe paralela e suave, para não acordar os cães, e o barco lá vai, envolto em bruma macia, com a proa em jeito de esporão qual Nautilus do capitão Nemo que cortava pelo meio navios incrédulos, semeando o terror e desafiando a imaginação em toda a extensão das vinte mil léguas submarinas.

O barco tem a forma, o perfil esguio de uma embarcação costeira, embora não se possa confundir com uma péniche, barcaça como as há em França, batelões que carregam sal, carvão, areia, rios abaixo, de comporta em represa. Costumam transportar bicicletas e mesmo carros, à popa, junto à cabina que serve de casa ao mestre, cortinados nas janelas, vasos com sardinheiras, o fumo suave a diluir-se, rio fora, deixando no ar um perfume de comida caseira. À popa do barco também há um carro, e a encimar o camarote imponente uma chaminé bem erguida ao céu, reforçada por pedra robusta. Na realidade, o barco é uma pequena propriedade de forma triangular, paralela à estrada, na Aiana, cercada por um muro caiadinho de branco que remata, a sul, um ângulo agudo pronunciado que dá ao conjunto uma forma que sugere um barco, fantasia que me passou pela cabeça. Como passamos por ali, com alguma frequência, habituámo-nos a observar se a casa está ou não fechada, se há luz, se a tripulação sobe ao tombadilho. E, assim, o barco entrou na nossa linguagem codificada. Por vezes, quando nos aproximamos, vemos o comandante e a sua companheira entregues à faina de mareantes, ele subindo à gávea, compondo as vergas, aparando a roseira, arrancando as ervas ruins, ela baldeando o convés, estendendo cobertores, abrindo as janelas de par em par, virando de bordo rumo ao sol, a favor da brisa de leste. O barco tornou-se uma curiosidade, quase um mistério adensado pela discrição das pessoas que habitam aquela casa ancorada na curva, rodeada de cães, à falta de gaivotas, quase atracada à muralha do Zé do Justo. Que gente será aquela, terão filhos, virão de Lisboa, que fazem na vida além de embarcar nos fins-de-semana? Nunca vimos grumetes no convés, não me recordo de grande animação a bordo, sardinhada, caldeirada, piratas de perna de pau, apenas o comandante e a companheira, discretos na manobra, mecanizados numa rotina que deixa entrever uma cumplicidade forjada em muitos anos de navegação a dois, sem grandes falas, com silêncios eloquentes, movimentos combinados, acções encadeadas. Não estou certo de os reconhecer se os encontrar noutros mares, noutras paragens, no mercado de escravos de Azeitão, na venda dos arcabuzes ou na tenda das especiarias.

No fundo, levamos a vida a construir o nosso barco, o nosso quartel, o nosso quintal, o cantinho onde nos sentimos ao abrigo das tempestades da vida. Nem sempre conseguimos, mas já é bom tentar, viver de esperança, ir fazendo, calafetando, remendando uma vela, raspando o casco, cosendo a rede, semeando, regando, queimando silvas, procurando a estrela do pastor ao voltar a casa, quando o fumo se eleva das chaminés, os cães ladram ao longe e a terra arrefece lentamente.

O mar e os barcos fazem parte da nossa vida, dos nossos sonhos. Por isso, no campo, mesmo sem searas a ondular, nos parece ver barcos onde, afinal, só há uma casa cercada por um muro pontiagudo, à beira da estrada.

D. Quixote de la Mancha também via gigantes onde apenas havia moinhos de vento. Do moinho das Caixas restam ruínas, vestígios mudos e tristes, de um tempo distante em que eu lá ia, montado num burrico, trocar um saco de trigo por outro de farinha. Foi-se o tempo, fica-nos a fantasia e a memória vacilante…

1997

sexta-feira, 9 de abril de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 2

as crónicas da Eventos...




A paixão de Cristo

António Cagica Rapaz

Há cerca de cinquenta anos, havia um Jesus e um Cristo na linha avançada do Desportivo de Sesimbra, terra muito votada ao culto do Senhor das Chagas.

Era um tempo bendito de inocência e sonho, vivido num universo de forte religiosidade, na companhia do nosso amigo e companheiro, o padre João, que tanto nos reunia no adro da igreja como no campo do Desportivo. Não sei se, na nossa infância tão povoada de ideais e de sonhos, o futebol terá chegado a aproximar-se da grande área da religião, mas foi certamente uma grande paixão.

E eu, como os outros, era um menino posto em adoração perante uma bola de futebol e em admiração diante dos jogadores do nosso Desportivo que passavam à minha porta a caminho dos treinos a que eu assistia sempre que a escola permitia.

Paralelamente, havia os ídolos distantes, quase irreais, de um Belenenses que o meu pai, sem esforço nem mentalização particular, me ajudara a preferir.

O Matateu morava connosco, ocupando uma moldura que pendurei na parede de onde ele me sorria com os dentes tão brancos como os cordões que sobressaíam no azul do céu da camisola com a Cruz de Cristo, tinha de ser…

Os anos passaram e quiseram os fados que me fossem proporcionadas a alegria de jogar futebol a sério e a honra de defrontar muitos dos ídolos da minha meninice. Porém, nem nos mais arrojados devaneios oníricos eu me atrevi a imaginar que, um dia, viria a jogar com o Lucas Sebastião. Afinal aconteceu, embora não fosse bem o Lucas da minha moldura, mas outro muito parecido que envergava as cores do Atlético. Felizmente, para meu grande contentamento e recatado orgulho, era o mesmo Matateu…

Ao longo da nossa vida, no futebol e no resto, vamos perdendo ilusões, com o desfazer de mitos e a degradação de valores. E a desilusão é tanto maior quanto mais perto estamos da realidade. Quem vive o futebol de longe, não sabe ou finge ignorar quanta mentira o envolve.

Há muitos anos que ficou para trás a idade da inocência e que me tornei convictamente céptico quanto à existência de verdade e transparência no mundo da bola. Não é, mas até podia ser uma questão de fé, pois também milhões de pessoas acreditam na existência de Deus sem dela possuírem qualquer prova irrefutável.

Ora, e aqui reside o fascinante mistério, apesar do muito que está por apurar sobre arbitragem, suspeitos aditivos vitamínicos, negócios duvidosos, promiscuidades e cumplicidades, o certo é que não deixamos de vibrar com a magia dos artistas, o entusiasmo da multidão ingénua, a euforia do golo e a alegria genuína da vitória.

E, apesar das sombras que pairam sobre os estádios, continuamos a gostar de futebol, presos ao sortilégio da bola, embora não seja como nos tempos do romântico quarto de hora à Belenenses ou das gestas heróicas de Jesus, de Cristo e tantos outros fiéis de lenço atado à volta das cabeças que metiam a rudes bolas com atilhos e que sofriam autênticas flagelações em campos pedregosos que percorriam calçados com botas de traves impiedosas.

Em verdade vos digo que os templos estão infestados de vendilhões mas, na sua essência, o jogo é o mesmo, a paixão não morreu, e esse é o admirável milagre do futebol…

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*Publicado no n.º 33 de Sesimbra Eventos, de Outubro/Novembro de 2004.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

AO REMINHO PELA BORDA D'ÁGUA, 5




Ícaro

António Cagica Rapaz

“– Ah, quem anda a escrever um romance é o Tomás.”

Era uma tarde deliciosa como só acontecem ao sábado, daquelas tardes em que o sol acaba por se pôr, vermelho em brasa, por trás da casa da Mafalda. Nessas alturas, gostaria de poder estar, ao mesmo tempo, no muro da lota e ver aquela bola de púrpura cair devagar para lá do farol. E voltar, a correr, para a Aiana…

O Miguel viera visitar-nos, o que sucede menos quando esperamos do que sempre que lhe apetece. E está muito bem assim. Viera deitar um olho à velha vinha revigorada por tardias chuvas e conversámos vagarosamente à espera do crepúsculo e das línguas de bacalhau.

O Tomás é publicitário, companheiro de infância do Miguel, cresceram juntos, e, com eles, cresceu também uma bela e saudável amizade, daquelas em que há partilha, confiança, cumplicidade, fraternidade e tudo quanto se sente sem se conseguir nem precisar definir.

“ – Já me deu a ler dois capítulos, é muito interessante. É uma história que mete um português de origem céltica e mafiosos espanhóis. Não é autobiográfica mas, curiosamente, há muito do Tomás no que li. Não sei como explicar, mas acho que aquilo é ele, é assim.”

O Tomás e o Miguel fazem-me, remotamente, pensar no D. Quixote e no Sancho Pança, aquele mais sonhador, figura esgalgada, pronto a desbravar mundos ao volante do seu decrépito e romântico “2 cavalos”. O Miguel é realista, desconfia de moinhos de vento, é seguro e determinado, positivo e estruturado. Os dois formam uma parelha admirável…

Ficou-me no ouvido a alusão às marcas, ao rasto da personalidade, do espírito do Tomás que se adivinha ou pressente naquilo que escreve.

Ao mesmo tempo, ocorreu-me a ideia de que o leitor que conhece o autor não é imparcial, antes procura (talvez até de forma inconsciente) sinais, referências, vincos pessoais de quem escreve. No fundo, a relação pessoal com o autor rouba neutralidade ao leitor, impede-o de mergulhar sem preconceitos na ficção, aguça-lhe a curiosidade, coloca-lhe uma lupa na mão.

Esta relação de proximidade pode falsear as perspectivas e destruir o equilíbrio e a equidistância indispensáveis a uma apreciação correcta.

Neste processo, cada um tem o seu lugar, e certa forma de intimidade pode afectar, tornar-se perniciosa. Ícaro queimou as asas de cera por se ter aproximado demasiado do sol…

Não sei se será bem assim, mas ocorreu-me a ideia de que o leitor, tal como o espectador do cinema, por exemplo, têm de fazer concessões, têm de se prestar ao jogo, aceitar as regras da ilusão e da ficção. Nenhum de nós espera que, em palco ou no filme, os actores morram de verdade. Ou que o realizador utilize sangue real em vez de um qualquer líquido avermelhado. Ninguém deve preocupar-se com a autenticidade do que nos é relatado, se o Edmond Dantès viveu ou não em Marselha, se o Conde de Monte Cristo existiu ou não. Talvez outro Miguel, amigo de Alexandre Dumas, tenha encontrado traços da personalidade do escritor na figura do Conde.

No fundo, o juízo de valor que fazemos de uma obra, seja qual for a sua natureza, é influenciado ou condicionado pelo facto de conhecermos o autor. E o nosso olhar não é imparcial.

Por outro lado, talvez devêssemos contentar-nos em representar cada um o seu papel, ou seja, mantermos uma certa distância em relação ao artista. Podemos admirar um actor durante anos ou perder essa admiração porque um dia o vimos perdido de bêbado numa discoteca. Há relações de ordem afectiva que funcionam bem enquanto cada um fica no seu lugar, até se ultrapassar o limiar perigoso da intimidade. Ou se arrancar a máscara, pondo um termo à ilusão e ao mistério.

Uma das razões do enorme fascínio que o carnaval de Sesimbra exercia, advinha do jogo de ambiguidade, dos lances cruzados de luz e sombra, realidade e mistificação, provocação e irreverência. A queda da máscara punha fim ao sonho, à delícia da sugestão e da fantasia, ao devolver-nos à crua banalidade do quotidiano. O fim da ilusão acontece, por vezes, quando acaba o namoro e se entra na rotina, sem flores, sem poesia, sem ternura, sem romance. Quando deixamos o nosso lugar na plateia ou na bancada lateral, quando passamos para o outro lado, quando saltamos para o palco, quando furamos a tela, quando nos equipamos no balneário e vemos de perto aqueles que foram nossos ídolos, então, aí, caem-nos os braços de desalento, ficamos mortalmente desiludidos. Recordo uma tarde, no estádio da Luz, em jogo contra o Benfica, em que ouvi jogadores da camisola gloriosa gozarem (à distância, claro) os ingénuos e apaixonados adeptos do clube. Já os cultores da Arte pela Arte achavam que o contacto com a realidade avilta o artista. O mesmo pode ser válido para qualquer de nós, quando entramos em círculos de maior intimidade, correndo fortes riscos de desilusão.

Ao conhecer por dentro o mundo do futebol (que tanto me deslumbrava na meninice) vi caírem inúmeras máscaras. Nas nossas vidas, com os nossos familiares, com os nossos amigos, a fronteira da desilusão situa-se muitas vezes no campo minado dos cifrões, das coisas materiais que provocam, em muitos casos, a queda das máscaras. E então ou há a dignidade da ruptura ou se afivela nova máscara, para um faz de conta, paz podre ou harmonia postiça. Por isso, deixemos trabalhar os artistas, limitemo-nos a vê-los em cena, maquilhados, equipados, fazendo malabarismos com a bola, maravilhas com o pincel, primores com as palavras, fascinação com a voz. Não procuremos saber se a pistola do actor dispara bala real ou pólvora seca, não nos preocupemos em apurar se Sinatra era ou não mafioso. Contentemo-nos em deixar esvoaçar o sonho e a ilusão, ouvindo a voz incomparável do Francis Albert em crepúsculos mágicos de sábado.

Que importa saber se o Tomás tem ou não origem céltica ou se a sua sombra se recorta por trás esta ou daquela personagem. Não me perguntem se o Tomás existe ou se tudo isto não passa de pura invenção. Vivamos a vida como ela vem, não nos aproximemos demasiado do sol…

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*Publicado originalmente na edição de Abril de 1999 de O Sesimbrense.

terça-feira, 6 de abril de 2010

NOTAS & NOTÍCIAS, 1





Como comprar os livros de António Cagica Rapaz

Cinco dos livros da bibliografia de António Cagica Rapaz - aqueles que, entre 2003 e 2009, foram editados com as chancelas da Garrido, da Sete Caminhos e da Fonte da Palavra - podem ser adquiridos junto desta última editora (para tanto, deve consultar aqui o respectivo portal).

No concelho de Sesimbra, Líbero e Directo, As Bonecas Russas, Janela Com Escritos, Que País é Este? e Tratar da Vida estão à venda na Papelaria Cotovia, situada nesta localidade da freguesia do Castelo.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

NOVENTA E TAL CONTOS, 4


foto tirada daqui

Mar novo

António Cagica Rapaz

Os pescadores costumavam sentar-se nos degraus, ao pé da Sopa, a olhar as ondas repetidas de vendavais intermináveis enquanto a miudagem lançava estrelas que subiam muito no céu escuro, iam mais longe do que os sonhos de esperança daqueles homens para quem o mar era a vida e, às vezes, a morte.

Hoje o mar não é o mesmo, nem os homens. O mar é menos cruel mas menos pródigo também. Os homens souberam meter as mãos pelas entranhas do mar até lhe arrancarem o último peixe dourado e já não temem os vendavais agora transformados em pausa apetecível. Acabou a angústia de esperar o fim da tempestade para retornar à faina, matar a fome aos filhos. O mar cansou-se e encosta-se de mansinho aos rochedos, adormece antes do Verão para os barcos de cruzeiro, para o turismo. Os homens deixaram de olhar o mar e observam os que vêm contemplá-lo, saborear o sol que brilha no céu limpo das nuvens negras de outrora. O mar não galgou a muralha, mas o novo mar é em terra onde há cada vez mais pescadores e peixes mais ou menos frescos. Neste mar novo não há arrais demasiado exigentes e tudo o que vem à rede é peixe…

1980

quinta-feira, 1 de abril de 2010

CONFRARIA MÍNIMA, 1

as crónicas da Eventos...



Estranheza*

António Cagica Rapaz

Muitas pessoas crescem, vivem e morrem na terra onde nasceram. Nem sequer acham isso natural, por nunca lhes ter passado pela cabeça a hipótese de mudar de vida e de localidade. Menos ainda imaginam o que representa, o que implica começar de novo, adaptar-se, estabelecer relacionamentos, arranjar novas referências, criar hábitos, integrar-se.

As motivações que nos levam a deixar a terra natal podem ser múltiplas, mas admito como provável que uma tal decisão possa resultar da confrontação entre dois factores principais. De um lado, a força dos laços afectivos que nos prendem aos familiares, aos amigos, ao universo da nossa infância. E, do outro, a premência do apelo externo, sentimental, profissional, por exemplo.
Em geral, todos gostamos das nossas terras, mas não é menos verdade que algumas, como é o caso de Sesimbra, reúnem mais predicados do que outras. Por isso, acredito que possamos deixar sem grande mágoa (e até com alívio) localidades menos interessantes.

E é isso que me leva a olhar com incompreensão o facto de muitos amigos de infância viverem hoje longe da nossa terra sem que tal pareça afectá-los. É estranho...

Alguma estranheza é igualmente o que sentimos num primeiro olhar sobre a Quinta do Conde, terra de ninguém cheia de gente, ponto de encontro de quem não combinou juntar-se.

Habituados às nossas ruas estreitas que descem para o mar, à proximidade de portas contíguas e janelas indiscretas, à intimidade, até ao desrespeito pela privacidade, sentimo-nos incomodados com aquelas estradas largas, intermináveis, aquelas casas protegidas por muros, propriedade privada, vidas escondidas. O denominador comum é a sombra dos pinheiros, o aliado é o tempo. Só ele vai aproximando as pessoas, no mercado, na farmácia, nos cafés. A desconfiança esbate-se, as línguas soltam-se, os portões abrem-se, os muros diluem-se sob as roseiras e as buganvílias.

A grande Lisboa será, para a maioria, a esperança de um emprego, enquanto um lote de terreno poderá ter constituído, para outros, um investimento para a velhice. Depois, Setúbal também não é longe, as praias ficam perto, a localização é privilegiada, a convergência natural. O ar é saudável, as condições de base existem, resta fazer o mais difícil, a criação de um património cultural comum, uma identidade e, em último estádio, raízes. Já não será para esta geração, há que apostar na juventude.

Sesimbra, a velha senhora posta a banhos num mar de agitado desenvolvimento urbanístico, rebenta pelas costuras, sufocada por carros, invadida por incontáveis e insaciáveis esplanadas, está a passar por um processo algo semelhante, igualmente invadida por estranhos, mas com a diferença que estes estão, por norma, em trânsito, vêm pela praia, pelas caldeiradas, e depois vão-se embora. As casas que eles ocupam durante a época balnear ficam fechadas o resto do ano, pelo que os nossos jovens têm de ir morar para o campo, em pequenas Quintas do Conde onde só não se sentem estranhos porque a escala é menor e há sempre um parente, um amigo, o nosso mundo é pequeno.

Por este andar, dentro de poucos anos, a Quinta do Conde terá ganho consciência e proveito da sua dimensão e do seu potencial. E Sesimbra poderá tornar-se não uma Quinta mas um quintal à borda d’água...

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*Publicado no n.º 38 de Sesimbra Eventos, de Junho/Julho de 2005.